terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Corrupção, política e imprensa

Alberto Luiz Schneider

A reunião dessas três palavras – corrupção, política e imprensa – é, por si só, explosiva, pois implica em poder: poder do Estado, poder privado, poder da palavra.  E poder, além de outras coisas, implica em dinheiro. Razões suficientes para tornar o tema carregado de sentimentos e ressentimentos, ideologias e contra-ideologias, preferências políticas e políticas de preferência. Além disso, o tema ainda traz consigo ideias prontas (“todo político é ladrão”, “sempre foi assim”, “no Brasil tudo acaba em pizza” etc.) e forte teor emocional, vide a violência verbal da qual FHC e Lula foram e são alvos.
Ainda assim, quem pode negar que essas três palavras estão no epicentro da disputa política? Isso mesmo leitor: falar de corrupção não é apenas falar de ética, falar de imprensa não é apenas falar em liberdade. Estamos falando de disputa política.
O PT, quando oposição, regozijava-se em criticar os partidos tradicionais, especialmente os de direita. Vendia a ilusão de que o grande problema nacional era a corrupção, o que sempre foi um cacoete do populismo conservador, vide a UDN e Jânio Quadros, no passado. Claro que o partido dizia uma série de outras coisas, entre elas, a defesa de maior justiça social. E por cumprir essa parte do programa, reduzindo a pobreza e a desigualdade, foi reconduzido ao poder pelos eleitores, contrariando a preferência explícita da mídia.
A oposição, nomeadamente o PSDB e o DEM, que foram governo com Fernando Henrique e oposição a Lula e agora a Dilma, assumiram o mesmo papel anteriormente desempenhado pelo PT, ao menos nesse quesito. Versar sobre a corrupção (dos outros) foi e é um tema popular. Trata-se, porém (antes, como agora), de uma agenda paupérrima, no melhor estilo lacerdista. O país precisa discutir política econômica (os juros, a indústria, o câmbio, a inovação); política energética e ambiental; educação, ciência e tecnologia; a saúde pública; a ainda chocante desigualdade social, entre outros assuntos tão prementes quanto. O país precisa reformar o sistema tributário (reduzindo os impostos que incidem sobre o consumo popular e a produção e aumentando os impostos sobre a propriedade, a especulação financeira e o consumo de luxo), o que se relaciona com a lógica da desigualdade; o país precisa reformar a Justiça, tornando-a mais célere e mais justa; precisa viabilizar a infraestrutura física, conciliando-a com as questões ambientais; e um longo etc. O efeito mais deletério da corrupção nem é o dinheiro desviado (que é, sim, um problema grave), mas o fato de essa agenda colonizar o grande debate público.
Mas por que a corrupção é, de longe, o tema mais debatido? Não é em função do interesse público, pois se assim o fosse, dever-se-ia debater a política de juros, que desde FHC estão entre os mais altos do mundo, drenando fortunas dos cofres públicos para os bancos e a “turma da bufunfa” (a expressão é do economista Paulo Nogueira Batista Jr). Além disso, falar em educação e saúde pública, em política econômica também é do interesse público, evidentemente. Mas por que se fala tanto em corrupção, afinal? Por que é um tema fácil, pois qualquer um entende o significado de uma pilha de dinheiro na cueca ou na bolsa. É muito mais fácil e mais popular do que falar de temas complexos, que envolvem dados de difícil decodificação e sistemas interpretativos, geralmente atravessados pela lógica não-dita de interesses (legítimos ou não). Falar tão somente de corrupção serve também para os setores privados colocarem o Estado na defensiva, preservando seus interesses concretos. (É por isso que o mercado financeiro e seus sócios na imprensa gostam de falar de corrupção, pois, enquanto todos falam de dinheiro na cueca, não se fala em temas mais sofisticados e relevantes).
Agora chegamos ao terceiro vértice do triângulo: a imprensa. Por que a mídia brasileira reduziu o debate público à corrupção? Primeiro: porque a corrupção existe. Mas é estranho que a Veja, a Folha, o Estado e o sistema Globo só se interessem pela corrupção federal, como se não houvesse corrupção nos estados e municípios (que somados, manipulam verbas maiores que as do governo federal). Segundo: a imprensa investe nesse tema por que é um assunto popular, sobretudo na classe média tradicional, de vezo reconhecidamente moralista. Mas é lamentável que um grande jornal, como a Folha, tenha renunciado à tarefa de pensar o país e suas questões históricas, reduzindo sua pauta jornalística quase que exclusivamente à corrupção. Trata-se de uma miséria intelectual e política, mas coaduna-se com os interesses da oposição e do mercado financeiro. Terceiro: a imprensa, ou essa imprensa, não inventou a corrupção, é certo. Mas há comportamentos incompreensíveis para quem assume a postura de paladino da moralidade (o que lembra o PT de outrora, com uma diferença: é natural que partidos se comportem como partidos, mas é esquisito que órgãos de imprensa se comportem como tal). Exemplo: por que um personagem que ocupa um ministério, quando é derrubado, deixa de ser pauta? Se fosse o interesse público que mobilizasse a grande imprensa, o sujeito deveria permanecer sob escrutínio, até que a Justiça o condene ou inocente. Não é o que a imprensa faz, pois imediatamente esquece o ministro caído e procura outro para alvejar. Outra estranheza: a imprensa ataca, a exemplo de uma manada, um ministro por vez. Que o PSDB e o DEM, na qualidade de partidos de oposição, ajam com estratégia e cálculo, evitando dispersar energia, é perfeitamente legítimo e faz parte do jogo democrático, mas é curioso que a imprensa proceda sob pauta tão específica. Sexto e mais desabonador de todos os pontos: surgiu um livro, chamado A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, com primeira edição esgotada em 48 horas, que traz documentos e pesadas acusações de corrupção acerca das privatizações realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso. Que os partidos que participaram daquele governo – que teve méritos, mas que pode e deve ser criticado, como o atual – busquem desqualificar a pesquisa de 12 anos realizada pelo jornalista é compreensível. Mas é intolerável que a grande imprensa ignore o livro, que tem sido massiçamente comentado nas redes sociais. A imprensa não deve acatar por acatar o argumento do texto, mas deve investigar, do mesmo modo que agiu com Roberto Jefferson, no dito mensalão. O silêncio da mídia em relação ao livro é constrangedor.
Numa democracia, a imprensa deve ser livre. Mesmo a imprensa lesa-jornalismo deve ter o direito de existir e publicar. Mesmo que brutalmente partidarizada, deve ser livre. O estado não deve regular, nem restringir a palavra. Deve, nos marcos da lei, como nas democracias ocidentais, garantir o direito de resposta e a responsabilização jurídica pela difamação e pela mentira (o que a Constituição já prevê). O problema não está no Estado, portanto. É no seio de uma sociedade plural que deve nascer e vicejar a palavra. A democracia brasileira deve ser capaz de criar e regular um sistema de informação mais pluralista, mais aberto, mais democrático. Não deve haver uma única língua impressa. É preciso que jornais, revistas, provedores de internet, TVs atendam a interesses e ideários múltiplos e diversos, pois múltipla e diversa é a sociedade. Um país que está a caminho de ser a sexta maior economia do mundo (The Economist), capaz de viabilizar a ascensão social de milhões, de manter as contas públicas e a inflação em ordem, crescendo, ainda que modestamente, não deve ser regido pelo oligopólio da palavra controlada por quatro famílias: Civita (Veja), Frias (Folha, UOL), Mesquita (Estadão), Marinho (Globo).  O Brasil precisa de mais imprensa, mais TVs, mais jornais e revistas, mais provedores, mais leitores, mais escritores, mais pluralidade, mais liberdade. Democracia de fato demanda palavra livre e plural. Livre da tutela do Estado e livre da tutela privada.
Libertas Quæ Sera Tamen!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Pesquisa e pensamento: o Brasil em pauta

Alberto Luiz Schneider
Uma das funções do pensamento intelectual de ponta é contestar – pela via da pesquisa empírica eçda reflexão teórica – as verdades estabelecidas.  Sob esse aspecto, o Brasil tem avançado não apenas nas Humanidades, mas em quase todas as áreas do conhecido. Avanços que, diga-se, não teriam sido possíveis sem a instalação de um sofisticado sistema de pós-graduação, com agências de financiamento, estruturas de pesquisa e bebates acadêmicos através de revistas especializadas, congressos e seminários. Os benefícios da produção e da circulação de conhecimento impactam várias áreas, inclusive no mercado editorial, pois a pós-graduação cada vez mais difundida é, ao mesmo tempo, geradora e consumidora de livros. Claro que existem problemas nesse campo, como a excessiva especialização, o hiper-produtivismo, em que o pesquisador, muitas vezes, preocupa-se mais com o currículo lattes do que com a efetiva criação intelectual, científica e filosófica.  
No campo da historigrafia tem havido enorme avanços teóricos e empíricos nos últimos anos, que têm forçado a revisão de uma série de imagens consagradas. De acordo com uma dessas imagens, no período colonial toda a produção estava voltada para o mercado interno. Hoje, vários estudiosos estão revendo essa perspectiva ao perceber que existia um mercado interno mais dinâmico do que convencionalmente se imagina. Na Revista Pesquisa FAPESP – edição 189, de novembro de 2011 – em artigo intitulado “Por mares sempre navegados”, Neldson Marcolin mostra como se construíram, no Brasil, grandes embarcações, que estavam entre as maiores do mundo.
Na mesma edição da revista, Márcio Ferrari, em “Amotinados do império”, resenha Revoltas, motins, revoluções, publicado pela Alameda Casa Editorial e organizado por Monica Duarte Dantas, professora do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, com a contribuição de especialistas de diferentes universidades brasileiras, de Norte a Sul do país. O livro contesta a visão tradicional, segundo a qual teria havido baixa participação popular na esfera pública e reduzida contestação política à ordem vigente. Os textos abordam uma série de revoltas, muitas delas contra os impostos ou os preços, como o Motim do Vintém (1880), no Rio de Janeiro. Movimentos já estudados, como a Confederação do Equador (1824), em Pernambuco; a Guerra dos Farrapos (1835-1845), no Rio Grande do Sul; ou a Guerra de Canudos (1896-1897), na Bahia, são rediscutidos. O estudo mostra como que certos conceitos, como a “liberdade”, têm significados muitos diferentes, a depender dos agentes socais e políticos.  

Os amotinados do Império

Participação popular nas revoltas do século XIX foi maior do que se pensa
Revista Pesquisa  FAPESP, 189, Novembro de 2011
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/
Márcio Ferrari
Mesmo que difícil de sustentar com profundidade, um dos mitos da historiografia brasileira tradicional, ainda ecoado nas escolas e na imprensa, é a imagem ordeira do Segundo Império. Ao mesmo tempo, não é segredo que o século XIX foi marcado por numerosas rebeliões regionais, entre elas conflitos célebres como a Guerra dos Farrapos e a Confederação do Equador. Alguns desses movimentos duraram vários anos e tiveram uma complexidade ainda pouco estudada. A professora Monica Duarte Dantas, que leciona história do Brasil no Instituto de Estudos Brasileiros e integra o programa de história social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ambos da Universidade de São Paulo, percebeu isso de perto pela primeira vez na década de 1990, quando, numa pesquisa de pós-graduação financiada pela FAPESP, estudou a população que veio a migrar para o arraial de Canudos, aderindo à liderança de Antonio Conselheiro. Monica observou que essa “base” da insurreição se organizara contra impostos (motivo que gerou várias outras revoltas por todo o país) muito antes de aderir ao movimento do líder messiânico. Ou seja, parte da sustentação do Conselheiro vinha, na verdade, de uma mobilização articulada e eminentemente política, de início totalmente alheia ao aspecto religioso de Canudos – tanto que, futuramente, a Justiça eximiria o líder do processo que julgou os revoltosos.
Mais tarde, ao organizar um curso sobre as revoltas do século XIX, Monica deparou com uma bibliografia esparsa e cheia de lacunas em relação a vários movimentos, sobretudo os que não foram capitaneados pelas elites, e, mesmo quando havia textos em fartura, o enfoque era acima de tudo concentrado nas disputas políticas e nos conflitos internos nos grupos de poder. Ela constatou também que havia estudos não publicados sobre a participação popular nesses movimentos, como um artigo escrito pelo historiador mexicano Guillermo Palacios sobre a pouco conhecida Revolta do Ronco da Abelha, ocorrida entre 1851 e 1854 no sertão de cinco estados do Nordeste brasileiro, contra o censo e o registro civil. Isso a levou a imaginar uma reunião de artigos sobre as sedições do século XIX, dessa vez enfatizando a participação dos “homens livres, pobres e forros”. O projeto, gestado desde 2007, com textos inéditos e outros reescritos, concluiu-se agora, com a publicação do livro
Revoltas, motins, revoluções pela Alameda Casa Editorial.
“Até os anos 1960, a produção histórica privilegiava os chamados movimentos messiânicos sebastianistas. Falava-se muito do aspecto cultural-religioso, mas não tanto sobre o sociopolítico”, diz Monica. “Isso acabava gerando uma visão genérica de líderes carismáticos seguidos por uma população pobre e ignorante, e assim a dimensão de protesto acabava se perdendo.” O que os artigos do livro revelam, no entanto, é um intenso, ainda que lento, aprendizado de cidadania por parte dos participantes anônimos dos motins do século XIX – e muitos deles tiveram suas reivindicações atendidas. “Vê-se a constituição do Estado nacional correndo paralela à história institucional”, diz Monica.

“Uma ideia importante com que trabalhei foi considerar que as elites, quer fossem conservadoras, quer estivessem em ruptura com a ordem vigente, precisavam de tropas para os decisivos combates que conduziam. E essas tropas eram formadas pelos de baixo. Isso é essencial não esquecer”, diz Denis Antônio de Mendonça Bernardes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, autor de dois capítulos do livro, um sobre a revolução republicana de Pernambuco, em 1817, e outro sobre a Confederação do Equador, de 1824. “Nos vários campos em luta pode ser encontrada uma diversificada formação social e racial”, prossegue Bernardes. “Por exemplo: índios do sertão de Pernambuco lutaram a favor da monarquia portuguesa e contra os patriotas de 1817. E padres, militares e senhores de engenho, para citar apenas três categorias com larga participação em 1817, pagaram, por vezes, muito caro a rebeldia contra o Estado monárquico português.”
A participação de escravos libertos entre as tropas que lutaram sob o comando rio-grandense na Guerra dos Farrapos atraiu a atenção de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, professor do Departamento de História e dos programas de pós-graduação em história e relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seu artigo, ele enfoca a figura do “escravo guerreiro” – armado e a cavalo –, que, embora praticamente desconhecida, desempenhou papel-chave no conflito. E não é por falta de estudos sobre a Guerra dos Farrapos, um episódio muito caro ao Rio Grande do Sul. Segundo Guazzelli, a historiografia tradicional (isto é, a predominante até meados do século passado) sempre minimizou a presença da mão de obra escrava no estado, restringindo sua presença às regiões de produção do charque. No entanto, no início do século XIX a então província ficou em terceiro lugar entre as que mais importaram escravos da África. Uma peculiaridade local era que vinham muitas crianças pequenas, em idade pouco produtiva, mas apropriada para começar a aprender a montar cavalo. Quando a guerra começou, a presidência da província publicou uma convocação aos cidadãos para que, de cada três escravos que possuíssem, libertassem um para lutar.
Estâncias
Essa condição deu aos escravos armados algum poder ante os comandantes, assim como já havia, no trabalho nas estâncias, relações de compadrio e empréstimo e a possibilidade de se tornarem agregados – o que explica, em parte, a ocorrência relativamente rara de fugas para além da fronteira, apesar da facilidade oferecida pelo transporte animal. Ao fim da guerra, os ex-escravos se tornaram um problema para os farroupilhas e para o governo do Império. Eram numerosos demais para serem mantidos libertos sem que isso provocasse a revolta dos ainda escravizados; temia-se que formassem bandos criminosos; se fossem para o Uruguai, provavelmente seriam pagos para lutar e provocariam um problema diplomático. A “solução” foi promover um massacre na última batalha da guerra, a de Porongos.
Para a pesquisa de Guazzelli, assim como para as demais que originaram os artigos de Revoltas, motins, revoluções, foram importantes fontes como registros civis, correspondências oficiais e particulares, processos-crime e documentos policiais. No caso da Guerra dos Farrapos, além disso, uma contribuição inédita foi dada por arquivos da Argentina, principalmente, e também do Paraguai e do Uruguai, mostrando intensas negociações em torno dos escravos.
Os africanos também estão no centro dos episódios analisados em seu artigo por João José Reis, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia: uma greve de carregadores, escravos e libertos, em 1857 em Salvador, e, no ano seguinte, uma manifestação contra a carestia “reprimida a patas de cavalo”, conhecida como Carne sem Osso e Farinha sem Caroço. Reis ressalta que o movimento de 1857 foi a primeira greve geral de um setor da classe trabalhadora urbana no Brasil. “Ambos representam episódios de luta pela cidadania,  apesar de neles estarem envolvidos escravos, que não eram legalmente cidadãos”, afirma Reis. “Um dos movimentos exige do governo providência para se ter comida barata e o outro é um protesto contra a imposição de um novo imposto e outras regras de regulamentação do trabalho informal de rua.”
Movimentos
Apesar da diversidade dos atores e interesses envolvidos nas várias insurreições abordadas no livro, em todas estava em jogo, nas palavras de Bernardes, “o confronto entre diversos projetos possíveis de nação”. Do ponto de vista da população pobre e livre, tratou-se sempre de demandas por direitos, participação e cidadania. “Há indícios de outros movimentos, mostrando que a população se organizava cotidianamente em prol de reivindicações, e desde o período joanino”, diz Monica. Em muitos casos, como o Motim do Vintém (em 1880, no Rio de Janeiro, contra um imposto sobre o transporte urbano) e o já mencionado Ronco da Abelha, entre outros, as reivindicações foram atendidas, mesmo que antes disso os protestos tenham sido violentamente reprimidos.
“Esses episódios mostram por vários lados diferentes que o Estado não se constitui apartado da sociedade e que sua construção não se limita às elites”, diz Monica. Ela ressalta um aspecto interessante na variedade de fatos abordados no livro: houve mobilizações de protesto e também de apoio às autoridades, como no caso da solidariedade da população aos vereadores de Salvador durante o movimento Carne sem Osso e Farinha sem Caroço. A Câmara havia aprovado uma medida de controle dos preços dos alimentos e os vereadores eleitos foram ameaçados de destituição pelo governo imperial.
A construção do Estado que se observa no livro se dá, em alguma medida, pela absorção das palavras de ordem e dos valores da elite, como liberdade, igualdade e cidadania. No entanto, como observa Monica, “o que o senhor do engenho entende como liberdade não é o mesmo que o agregado de suas terras”. Dá-se uma “reinterpretação do vocabulário iluminista-liberal” no momento de contribuir para construir instituições como o Judiciário e o sistema eleitoral. Um caso exemplar dessa dinâmica é a dos vaqueiros da Balaiada, sublevados contra o governo imperial (entre 1838 e 1841 no Maranhão, no Piauí e no Ceará), que se apropriaram do discurso do jornal Bemtevi, porta-voz do liberalismo com sede em São Luís cujo único redator era Estêvão Rafael de Carvalho, catedrático da Escola de Comércio, formado pela Universidade de Coimbra e ex-deputado na Corte. A relação entre essas duas pontas da sociedade – uma elite “esclarecida” e trabalhadores do interior em geral analfabetos – é o tema do capítulo escrito por Matthias Röhrig Assunção, professor da Universidade de Essex, na Inglaterra, e especializado em história do Maranhão.
Numa evidência de que ainda há muito a ser escrito e pensado sobre a organização do povo durante o Segundo Império, o livro traz na introdução escrita pela organizadora um levantamento – considerado pioneiro pela historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias em seu texto de apresentação ao volume – da trajetória das medidas jurídicas e políticas de controle das sublevações, importadas do sul dos Estados Unidos e incorporadas ao Código Criminal do Império.

Por mares sempre navegados


Indústria naval do Brasil Colônia produziu no século XVII o galeão Padre Eterno, um dos maiores do período
Revista Pesquisa  FAPESP, 189, Novembro de 2011
 http://www.revistapesquisa.fapesp.br/
Neldson Marcolin
Deu no Mercurio Portuguez: “... e do Brasil virá também o galeão chamado Padre Eterno, que se faz no Rio de Janeiro, e é o mais famoso baixel de guerra que os mares jamais viram”. A gazeta mensal lisboeta trazia a notícia acima fechando a edição de março de 1665. O periódico de Antônio de Souza de Macedo, secretário de estado do Reino de Portugal, se referia ao barco de 53 metros (m), que deslocava 2 mil toneladas (t), com um mastro feito num só tronco de 2,97 m de circunferência na base. O navio começou a ser construído em 1559 a mando do governador da capitania do Rio, Salvador Correia de Sá e Benevides, na Ilha do Governador, em um local conhecido como Ponta do Galeão (onde fica hoje o Aeroporto Internacional Tom Jobim). Militar e político português, dono de engenhos e currais, Sá fez o mais potente galeão que pôde para evitar depender da proteção das frotas do governo ao se aventurar no comércio pelos mares.
Para confeccioná-lo, Sá mandou vir técnicos da Inglaterra, embora os mestres e artesãos coloniais tenham feito a maior parte da embarcação com a ajuda da mão de obra indígena, segundo conta o professor de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris, Luiz Felipe de Alencastro em O trato dos viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras, 2000). O Padre Eterno passou por Lisboa em novembro de 1665 e causou forte impressão no Reino e nas embaixadas europeias. Ficou conhecido como o maior barco da época. Alencastro, entretanto, registra que o sueco Kronan, de 2.200 t, e o francês Soleil-Royal, de 2.500 t, eram maiores. O galeão brasileiro usava madeiras nativas leves e era fácil de manobrar, característica importante nas frequentes batalhas navais. Essas vantagens não foram suficientes para evitar seu naufrágio alguns anos depois no oceano Índico, em data e circunstâncias desconhecidas.
O Padre Eterno foi o expoente de uma indústria importante no Brasil Colônia até o final do século XVIII. Já em 1550, o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, mandou instalar oficialmente em Salvador uma empresa de conserto e fabricação de embarcações. Os portos brasileiros eram frequentados não apenas por razões comerciais, mas pela necessidade de se fazer reparos em navios depois de longos meses no mar
Os portugueses dominavam a arte de construir todos os tipos de barco e de criar outros, como as caravelas, e foi essa indústria uma das responsáveis pela epopeia das grandes navegações naquele período. Tal sucesso foi facilitado pela padronização que os portugueses adotaram das proporções e medidas dos vários modelos de navio, feita pelo estaleiro lisboeta Junta das Fábricas da Ribeira. O livro das traças (1616), de Manuel Fernandes, por exemplo, trazia desenhos detalhados de 20 tipos de barco, segundo conta o engenheiro Pedro Carlos da Silva Telles no livro  História da construção naval no Brasil (Fundação Estudos do Mar, 2001).
Os projetos de construção eram levados a cabo de modo quase inteiramente empírico até meados do século XVIII. Pouco se sabia sobre estabilidade, durabilidade de materiais e resistência às ondas e aos ventos. “O único suporte científico eram rudimentos que datavam das experiências de Arquimedes na Antiguidade”, explica  Telles, hoje professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Não havia engenheiros para projetar e orientar a construção e era preciso trazer mestres de Portugal.”
Esses mestres vinham para a Bahia e o Rio, na maioria das vezes. No final do século XVI, o governo de dom Francisco de Souza deu caráter oficial ao estaleiro da Ribeira das Naus, de Salvador, que já funcionava desde antes, com Tomé de Souza. Em 1650, uma carta régia estabelecia que se deveria lançar ao mar anualmente pelo menos um galeão de 700 a 800 t. A tonelada correspondia à capacidade que o navio tinha de transportar tonéis. Segundo Telles, um navio de 100 t daquela época teria um deslocamento carregado de cerca de 250 t, segundo se entende hoje. A qualidade e abundância das madeiras brasileiras contribuíram para a forte atividade da construção naval da época.
Outros estados construíram estaleiros para construção e reparos de barcos no Brasil Colônia. Mas depois de Salvador foi o Rio que construiu mais navios. Em 1666 foi fundada na Ilha do Governador uma fábrica de fragatas.
Do mesmo lugar de onde saiu o Padre Eterno foram feitos outros barcos  que orgulharam os reis portugueses, como a fragata de guerra Madre  de Deus e um grande navio, o Capitânia Real.

 

domingo, 4 de dezembro de 2011

O blog dedica um poema de Mário de Andrade para Sócrates Brasileiro

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...

Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre’m-deus-padre irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.
A gente ainda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...
Estou com desejos de desastres...

Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois murmuram sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja a minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,

O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

Mário de Andrade

sábado, 3 de dezembro de 2011

Por um novo-desenvolvimento, social e ecológico

            A pobreza e o atraso não serão resolvidos pela mão invisível do mercado. É necessário políticas públicas, tanto focadas como universais, para se enfrentar o passivo histórico da pobreza e da desigualdade. Nos últimos anos, houve avanços consideráveis, que devem ser estendidos e sofisticados. Em termos orçamentários o bolsa-família custa menos de 1% do orçamento federal. Políticas de transferência de renda, como esta, somadas à universalização da educação e da saúde pública e do crescimento econômico, podem, em poucos anos, elevar o país a outro patamar civilizatório. Para que isso se concretize, é importante alterar o modelo tributário brasileiro (comentei isso no artigo “Brasil, cresce!”), não no sentido pleiteado pelos liberais/conservadores, que querem simplesmente cortar impostos. É preciso, sobretudo, reorganizar o sistema tributário, elevando os impostos que incidem sobre as grandes fortunas, o consumo de luxo, o agronegócio e a exploração mineral (setores importantes, mas de alto custo ambiental e baixa geração de empregos), desonerando o consumo popular e os setores produtivos, em particular as pequenas empresas, a indústria e os segmentos de alta tecnologia, todos eles vitais para o desenvolvimento. Esse novo-desenvolvimentismo, capaz de incorporar preocupações ecológicas, sociais e identitárias deve enfrentar, inclusive teoricamente, o pensamento conservador, em especial o conservadorismo mediático, que se recusa a pensar o Brasil, apegando-se à agenda fácil da corrupção, como se esse fosse o único problema do país.
Ps1. Incorporar ao novo-desenvolvimentismo preocupações ambientais não significa ser, necessariamente, contra Belo Monte. É preciso construir um pensamento mais sistêmico e mais sofisticado, capaz de articular, ao mesmo tempo, as questões ambientais e energéticas, os direitos das comunidades locais e os grandes interesses nacionais, o espírito animnal dos empresários e a atuação regulatória do estado democrático.
Ps2. A corrupção é um problema importante. Mas pensar o país com seriedade e radicalidade implica em superar lugares comuns, de apelo fácil, típicos do populismo conservador, tão ao gosto da classe média, provavelmente o segmento de classe mais conservador da sociedade brasileira (comentei o assunto no artigo “A classe média e os valores (conservadores)”.

Quebrando estereótipos: a pobreza no Sul do Brasil

O Sul do Brasil apresenta indicadores sociais, em geral, melhores que outras regiões brasileiras, inclusive o Sudeste, a região mais rica do país. O que não quer dizer que, nos três estados da região Sul, não haja bolsões de pobreza e de atraso. Em grandes traços, embora mitigados, a região apresenta padrões de desenvolvimento e de exclusão próprios da formação do capitalismo brasileiro. As reportagens abaixo, publicadas no Valor Econômico (01/12/2011) são uma leitura um tanto técnica, mas proveitosa para pensar o Brasil, proposta deste blog.
No Sul, 716 mil vivem com até R$ 70 por mês
Por Júlia Pitthan, Sergio Bueno e Marli Lima | De Anita Garibaldi (SC), Porto Alegre e Doutor Ulysses (PR)
Valor Econômico, 01/12/2011

Apesar de ostentar bons índices de desenvolvimento, o Sul do Brasil ainda abriga 716 mil cidadãos vivendo em condições de extrema pobreza. O número representa 2,6% da população na região. No país, o número de pessoas que vivem nessas condições corresponde a 8,5% da população.
São famílias que enfrentam o mês com até R$ 70 por pessoa, moram em condições precárias, trabalham informalmente e têm pouco acesso a serviços como saneamento básico. No Sul, cerca de 61% delas estão concentradas em regiões urbanas, mas as áreas rurais mais pobres, com agricultura de subsistência, também reúnem famílias cujo sustento depende dos programas de transferência de renda do governo federal.
Lançado em outubro, em Porto Alegre, com a presença da presidente Dilma Rousseff, o programa Brasil Sem Miséria quer ampliar a cobertura dos programas assistenciais, como o Bolsa Família, na região. Hoje, 81,52% das famílias da região, que estão incluídas no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), recebem o benefício. Segundo a secretária para Superação da Extrema Pobreza, Ana Fonseca, a média nacional chega a 96%. De acordo com ela, o objetivo é realizar, junto com governos estaduais e prefeituras, uma busca das faSegundo Ana, a região representa 4% dos extremamente pobres do país. Nos três Estados, o trabalho será ampliar a inclusão de famílias no Cadastro Único, banco de dados que reúne informações para a distribuição dos recursos do programa. Segundo a secretária, a meta é ampliar a cobertura dos programas até 100%.
Entre os três Estados da região, o Paraná é o que tem o maior percentual de pessoas em situação de pobreza extrema - 2,9% da população de 10,4 milhões de habitantes segundo o ministério. No Rio Grande do Sul, 306,6 mil pessoas vivem em situação de extrema pobreza, número que equivale a quase 90 mil famílias e 2,8% da população. Em Santa Catarina, a pobreza extrema atinge 1,6% da população - cerca de 102 mil pessoas que vivem com até R$ 70 por mês.
No Rio Grande do Sul, a meta do governo estadual é garantir o acesso de um terço do contingente de extremamente pobres para o programa Brasil Sem Miséria nos próximos quatro anos, mediante inclusão no cadastro único de benefícios sociais do governo federal. O governo gaúcho ainda não sabe quantas dessas pessoas estão fora do cadastro, que inclui 845,8 mil famílias no Estado. O ministério estima, porém, que o número de famílias pobres que poderiam ser cadastradas no Rio Grande do Sul chegue a quase 1,1 milhão. Dessas, 542,1 mil (com renda per capita de até R$ 140 e filhos com até 17 anos de idade) poderiam receber a Bolsa Família, mas apenas 444,4 mil têm acesso ao benefício.
O Rio Grande do Sul tem ainda um programa próprio, denominado RS Mais Igual, que complementa em R$ 50 por família os recursos concedidos pelo governo federal por meio do Bolsa Família. Os pagamentos devem começar em dezembro e a meta é beneficiar as cerca de 90 mil famílias nos próximos quatro anos. "A tendência é focar nos bolsões de miséria, porque 65% das pessoas em extrema pobreza estão em áreas urbanas", disse o chefe da Casa Civil do governo gaúcho, Carlos Pestana, que coordena a operação do Brasil Sem Miséria no Estado.
Segundo o secretário de Assistência Social de Santa Catarina, Serafin Venzon, o Estado tem o menor percentual de pobreza extrema do Brasil, mas há a intenção de ampliar a cobertura dos programas de transferência de renda no Estado.
No Bolsa Família, há 361.579 famílias cadastradas em Santa Catarina, mas apenas 139.902 recebem o benefício. Segundo Venzon, o Estado é o que tem a menor cobertura de famílias atendidas pelo programa. A presença da população extremamente pobre no meio rural é uma característica catarinense, que tem 42% das pessoas nessa condição fora das áreas urbanas. Além do Bolsa Família, o Estado mantém programas voltados para idosos e deficientes sem renda fixa suficiente para subsistência, que já atendem 77 mil pessoas.

Vila Senhor do Bonfim é um típico bolsão de miséria

Uma visita à vila Senhor do Bonfim, na zona norte de Porto Alegre, revela uma pequena, mas contundente amostra do que o Programa Brasil Sem Miséria terá de enfrentar na região. A menos de dois quilômetros da sede da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), o local é um típico bolsão de miséria, com quase 1,3 mil famílias sobrevivendo em condições de extrema precariedade.
Ao lado de vielas estreitas de chão batido, casebres minúsculos sequer conseguem abrigar do frio e da chuva milhares de pessoas submetidas a extrema pobreza. Água encanada existe, mas muitos barracos ainda foram construídos embaixo de uma linha de transmissão de energia, aumentando o já elevado risco de acidentes provocado pelas várias ligações irregulares na rede de baixa tensão.
Boa parte da população local não tem emprego formal e depende de "bicos" para viver, enquanto alguns acabam recorrendo ao tráfico de drogas e contribuem para aumentar a insegurança e a violência na vila. A escolaridade em geral é muito baixa, na faixa do ensino básico, e mesmo quem tem trabalho fixo raramente recebe mais do que R$ 600 por mês, estima a presidente da associação de moradores, Helena Cristina Borges.
Apesar disso, Helena calcula que só 90 famílias locais estão incluídas no cadastro único do Ministério do Desenvolvimento Social. Dessas, não mais do que duas dezenas recebem o Bolsa Família. A Fundação de Assistência Social da prefeitura (Fasc), que faz o cadastramento, não dispõe de dados específicos sobre a vila, apenas sobre o bairro onde ela está inserida, o Sarandi, que tem 2,2 mil famílias atendidas pelo bolsa.
Mãe de uma menina de dois anos e de um menino de quatro, Ana Paula dos Santos está há dois anos no cadastro à espera do benefício. Abandonada pelo marido, ela depende da ajuda da mãe para alimentar os filhos e a si própria e vive em um casebre de dois cômodos com as paredes ainda escurecidas pela fuligem produzida por um incêndio, oito meses atrás.
Ana Paula também não tem dinheiro para colocar os filhos na única creche da vila - que é privada- e sair em busca de emprego. E mesmo que tivesse, a baixa qualificação seria outro entrave. Aos 19 anos, a jovem ainda não concluiu a oitava série do ensino básico.
A poucos metros dali, Cristiane Teixeira, de 32 anos, começou a receber em agosto R$ 64 do Bolsa Família referentes a dois dos seus três filhos, com 3 e 11 anos de idade. Outra filha mora com a avó materna, porque não há mais espaço para ela no casebre que abriga a família, com dois cômodos e piso de cimento esburacado pelos frequentes alagamentos.
Cristiane é casada, mas o marido não tem renda fixa - faz apenas trabalhos eventuais na construção civil. Enquanto isso, mal acomodada em uma cadeira de plástico com encosto quebrado, ela confecciona peças de artesanato para vender na vizinhança. Procurar emprego também é difícil, porque além de não ter com quem deixar os dois filhos pequenos, ela concluiu apenas o ensino básico.
Segundo Helena, a Senhor do Bonfim é resultado da invasão, há 17 anos, de um loteamento do Instituto de Previdência do Estado (IPE). Até hoje os moradores esperam pela regularização fundiária da vila. Com a regularização, a prefeitura poderá organizar os lotes dos moradores e fazer melhorias, como calçamento das ruas e construção de rede de esgoto, praça, creche, posto de saúde e, se depender do desejo da população, de uma cozinha comunitária.
Atualmente, diz Helena, o único serviço público dentro da vila é uma escola estadual de primeiro grau com cerca de mil alunos, enquanto o número de crianças no local passa de 3 mil. (SRB)

Em Doutor Ulysses, não há agência bancária e hospital

Lindamir Carvalho e Eloir Leal, ambos analfabetos, moram com os seis filhos menores de idade em uma casa de três cômodos, à beira de um barranco na estrada que leva a Doutor Ulysses, um dos municípios mais pobres do Paraná. Dos seus 6 mil moradores, 49,9% são considerados pobres. A casa da família foi construída com madeira usada, doada por um vereador. "Fazemos nossa precisão ali no mato e tomamos banho em um cano que vem com água de poço", conta Lindamir, sobre a falta de banheiro.
A família não tem energia elétrica, televisão e geladeira, e usa fogão a lenha para cozinhar. Dias atrás, o casal estava com as crianças, colhendo laranja em uma área próxima, e recebeu advertência de representantes do Ministério do Trabalho. "Me colocaram para estudar o dia inteiro", reclama a filha mais velha, 14 anos. Os dois plantam feijão, milho e arroz no terreno no fundo da casa, para consumo próprio, e recebem R$ 230 do Bolsa Família. "Passamos apertado. Falta comida salgada. Vivemos na miséria", diz Lindamir, que tem 29 anos e está com depressão.
Doutor Ulysses fica a 130 quilômetros da capital. Para chegar lá, é preciso andar 50 quilômetros em estrada de pista simples, cheia de curvas e sem acostamento. Depois, atravessar o rio Ribeira com balsa, porque a ponte caiu em agosto (outra está em construção) e continuar mais 50 quilômetros em estrada de terra. "Nossa maior dificuldade é de acesso", afirma o prefeito, Josiel dos Santos, operador de máquinas eleito no ano passado, depois da cassação do prefeito anterior, por compra de votos.
Doutor Ulysses é uma das cinco cidades do Paraná ainda sem acesso por estrada asfaltada. Não tem hospital e, todo dia, um ônibus com 22 pacientes sai às 3 horas da madrugada para chegar às 7 horas em Curitiba. Nem parto é feito lá. O cartório só funciona uma vez por semana. Não há agência bancária, apenas um caixa eletrônico.
Desde o começo do ano, começou a funcionar na cidade uma lotérica, onde é pago o Bolsa Família. A folha de pagamento do benefício somou R$ 107 mil em setembro e beneficiou 867 famílias. "Não concordo com esses dados sobre pobreza. Há gente que ganha mais e não declara por medo de perder o dinheiro do governo", diz o prefeito, que reclama da inadimplência de 50% no pagamento de IPTU.
A palavra miséria não é bem aceita. "Aqui tem miséria, não miserável", diz o prefeito. "Não gosto da palavra, porque machuca a pessoa, é humilhante." Edineia e Valdecir de Almeida não trabalham e vivem com cinco filhos em quatro peças. Eles dizem que são doentes e, para economizar na conta de luz, lavam roupa e tomam banho no rio que passa no fundo do quintal. "Somos pobres. Miserável fica ruim", diz ela. O casal recebe R$ 204 do Bolsa Família e três filhos almoçam em um projeto da prefeitura, onde 82 crianças podem fazer teatro, dança, esportes, artesanato, fora do horário de aula.
Outra que depende de ajuda do governo é Marli de Jesus da Silva, mãe de 11 filhos e sem marido. Seis moram com ela em uma área rural. O mais velho, Ademar, de 17 anos, diz que tem problemas de saúde e reclama da situação. "Aqui vivemos mais do que na miséria. Às vezes deixamos de comer para dar para os pequenos", conta. Cinco crianças estudam e almoçam na cidade. "No feriado, não sei o que faço", diz Marli, sobre os dias em que os filhos fazem refeições em casa.
Se depender da vontade das crianças, contudo, os dias de estudo estão contados. "Queria trabalhar", reclama um dos meninos, de 14 anos. "Sei roçar, carpir", responde, ao ser questionado sobre o que poderia fazer. O garoto diz que já está acostumado a comer sem carne e que não precisa mais estudar. "Sei ler e escrever." (ML)

Anita Garibaldi tem 13% das famílias na pobreza extrema

Casas simples de madeira, galinhas e porcos no pátio e o plantio de pequenas áreas de milho e feijão são a realidade da maioria dos beneficiários do Bolsa Família em Santa Catarina. Apesar de haver grande concentração de pessoas extremamente pobres nas grandes cidades do Estado - em Joinville, município mais populoso, com 510 mil habitantes, 14.249 pessoas estão no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social -, as pequenas cidades com vocação agrícola reúnem a maior proporção de famílias que enfrentam o mês com até R$ 70 por pessoa.
Em Anita Garibaldi, no Planalto Serrano catarinense, cerca de 13% das famílias da cidade, com população de 8,2 mil pessoas, estão na faixa da pobreza extrema. O município tem a melhor cobertura do programa em Santa Catarina - das 1.280 pessoas no Cadastro Único, em condições de receber o benefício, 811 recebem os recursos. A cidade fica ao lado de Cerro Negro, que tem 18,9% da população em situação de pobreza extrema - maior percentual do Estado.
O secretário de Desenvolvimento Social de Anita Garibaldi, Itamar Leonel dos Passos, diz que o maior problema da região é a instabilidade de renda com a atividade agrícola. "As famílias não têm renda fixa, porque dependem do resultado do que colhem em pequenas propriedades. Além disso, há uma mentalidade muito individualista. As tentativas de montar uma cooperativa de produção nunca deram certo", explica.
Violência não é um problema na região. Todos se orgulham de poder deixar portas abertas, sem perigo de assaltos. "É uma cidade muito pequena, todo mundo se conhece", diz Passos. A falta de oportunidade de emprego formal é o maior empecilho para o desenvolvimento da região. Em Anita Garibaldi, o maior empregador é uma fábrica de cortinas, com cerca de 200 funcionários. Um concurso público da prefeitura, no início de novembro, era a principal aposta dos jovens da cidade que estavam na fase final do ensino médio.
A comunidade de Marmeleiro retrata bem a situação das famílias que dependem do benefício para viver. A região fica a cerca de 20 km do centro da cidade e o acesso é feito por uma sinuosa estrada de terra. A professora Geci Antunes Correa, 20 anos de magistério, leciona na escola que atende às crianças inscritas no programa e foi a principal responsável por avisar as famílias sobre a possibilidade de receber o benefício.
Com o Bolsa Família, eles passaram a receber R$ 134 fixos, usados para comprar comida e manter a casa, que é abastecida com energia elétrica, assim como as demais na comunidade. A dona de casa, que é gaúcha, diz que tem vontade de levar a família de volta para o Rio Grande do Sul, mas, como em Anita Garibaldi não pagam aluguel, a família acaba ficando.
Gaita dos Santos, 49 anos, é vizinha de Adriana no Marmeleiro. Ela vive com o marido e dois filhos em uma casa de madeira no alto de uma colina. No pátio, eles criam porcos e galinhas. "A gente tem para comer. Se a gente se aperta, a gente vende também", explica.
O marido de Gaita planta milho e feijão. O filho mais novo, Bruno, 11 anos, frequenta a quinta série, o que garante que a família receba o Bolsa Família. Como outros jovens do local, ele não tem perspectiva de deixar o Marmeleiro. Quer crescer e ajudar o pai na lavoura, ficar perto da mãe e da família. (JP)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A USP e o jogo dos erros

A Universidade de São Paulo – a melhor da América Latina, segundo ranking divulgado pelo Quacquarelli Symonds, instituto britânico especializado em educação – encontra-se conflagrada. Não é apenas a comunidade universitária que vive momentos de intensa agitação, também a opinião pública tem se entregado ao debate que, não raro, resvala para o preconceito, o ressentimento e a hiper sensibilidade ideológica, provenientes dos mais variados espectros políticos. Para que o debate avance, é necessário coragem para superar dogmas de marcada coloração ideológica e ir além do binômio polícia/maconha.  (Lembremos que a paixão por verdades universalistas é o que aproxima o radicalismo de direita e esquerda).
            Uma das razões que disparou o imbróglio foi a oposição à presença da polícia no campus, posição liderada pela extrema esquerda estudantil. É absolutamente legítima a contestação aos métodos da Polícia Militar, cujo histórico de truculência é imenso, dentro, mas principalmente fora da universidade. Trata-se de uma polícia criada e educada na ditadura, obsoleta, em uma sociedade democrática. Não é, porém, o campus da USP que necessita de outra polícia, mas o estágio civilizatório que a democracia brasileira alcançou que demanda um novo sistema de segurança, cuja atuação seja pautada pelos direitos humanos e pela eficiência policial.
Dito isto, é preciso dizer com coragem que o pleito de uma parte dos estudantes, que não admitem a polícia no campus, é ilegítimo. De acordo com o Estado de Direito, não cabem zonas de privilégios (que ainda marcam tão visceralmente a sociedade brasileira). Por isso, é constrangedor que setores estudantis, justamente os que mais fortemente empunham bandeiras igualitárias, pleiteiem privilégios para a cidade universitária. Porque os estudantes da USP, em geral brancos e bem-nascidos, teriam o “direito” de não sofrerem os constrangimentos da polícia paulista, enquanto os jovens em geral negros e mestiços, que vivem nas favelas próximas ao campus deveriam ser submetidos à arbitrariedade da PM? O movimento estudantil, porém, tem razão em criticar uma polícia que aborda estudantes de modo truculento, uma política viciada em abordar moradores de rua ou apenas pobres de modo humilhante, quando não pratica execuções sumárias. Convenhamos, é francamente ridículo que policiais saiam caçando estudantes fumando maconha, enquanto a cidade convive com delitos infinitamente mais graves, inclusive crimes de colarinho branco.  
Os problemas de segurança podem e devem ser enfrentados, dentro e fora do campus. Para isso, não é necessário militarizar a universidade, embora a polícia possa e deva atuar, nos marcos da lei, onde e quando for necessário, legítimo e cabível, seja na cidade universitária ou em qualquer outro lugar da urbe. É estranho que a cidade universitária tenha se tornado um dos lugares mais policiados da cidade de São Paulo. Do mesmo modo que é estranho ter uma universidade de portões fechados aos fins de semana, segregação inaceitável para uma universidade pública. A cidade universitária deve ser aberta, à polícia, à comunidade, à cidade, rechaçando qualquer exclusivismo.
Foi grave a decisão de parte dos estudantes em ocupar prédios administrativos e radicalizar o movimento. Erro tático (agravado ainda mais se considerarmos que a assembleia dos estudantes votou contra a ocupação), que serviu apenas para atiçar a mobilização dos setores mais obscurantistas da sociedade, dentro e fora da universidade, marcadamente setores da imprensa, que se colocam como porta-vozes desses setores. Adjetivações como "playboys", "bebês da USP", "delinquentes mimados" foram recorrentes em editoriais, artigos e blogs, mostrando mais ódio ressentido e ideológico do que crítica legítima aos excessos e equívocos juvenis. A tosca tentativa moralista de desqualificação atingiu o rés do chão ao se acusar os estudantes mobilizados de "ostentaram roupas de grife e automóveis novos".
*
O equívoco estudantil, cometido por rapazes e moças de vinte anos, ensejou outro equívoco, cometido por senhores bem mais vividos, de quem se esperaria ponderação e responsabilidade pública. A verdadeira operação de guerra deflagrada no dia 8 de novembro, quando a PM fez a reintegração de posse da Reitoria – empregando 400 policiais, helicópteros, carros e cavalos, que resultou na prisão de 73 estudantes – foi um espetáculo grosseiro e desproporcional de força, digno da ditadura militar. Um teatro cujos responsáveis, em última instância, são o Reitor da Universidade de São Paulo e o Governador do Estado. Um espetáculo deprimente, marcado pelo espírito de vingança e a exibição de força, voltado para saciar a fantasia de “ordem” e “pureza” dos setores mais retrógrados de São Paulo, cujo ódio à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas é evidente. Não perdoam que aquela casa tenha dado ao Brasil intelectuais progressistas como Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Florestan Fernandes e Milton Santos. Uma casa que continua a produzir conhecimento crítico fundamental para democratizar a sociedade brasileira, ainda brutalmente desigual, autoritária e atrasada. 
            É necessário coragem para criticar a inconsequência da radicalização estudantil, bem como para criticar a truculência patrocinada pelo Governador e pelo Reitor, no entanto, é  preciso ir além: a radicalização autofágica que a universidade vive tem raízes na ilegitimidade da nomeação do atual Reitor. Em 2009, o então Governador de São Paulo, José Serra, ao invés de nomear o primeiro colocado na lista tríplice construída democraticamente pela comunidade universitária, nomeou João Grandino Rodas, o segundo colocado, explicitamente vinculado ao partido que comanda o Palácio dos Bandeirantes. Segundo a legislação em vigor, o Governador tem o direito de nomear um dos três indicados pelo processo eleitoral. Porém, desde 1981 – ainda no tempo da ditadura, que teima em não terminar de vez –, os governadores vinham adotando a prática democrática de nomear o primeiro da lista. Numa sociedade democrática, não há problema que o Reitor e o Governador sejam do mesmo grupo político, desde que um e outro sejam eleitos. A violência institucional e política cometida pelo ex-Governador de São Paulo, ao nomear um Reitor que tem se mostrado despreparado, autoritário e inábil no diálogo com a diversidade, está na origem do estado de guerra pelo qual a Universidade de São Paulo tem passado.
            A USP precisa reconstruir sua organização interna, de modo que reitores exerçam suas funções de modo legítimo e democrático. A melhor universidade do Brasil precisa superar o medo das eleições, do diálogo e da divergência. A Unicamp tem mecanismos internos muitos mais modernos e democráticos. A USP foi fundada sob o espírito liberal-oligárquico de 32 e parece marcada pelos seus mitos fundadores.
*
Os estudantes, de um lado, fariam melhor se iniciassem um movimento por outra polícia, para si e a para a sociedade inteira. Aliás, por que o movimento estudantil não coloca no centro de sua agenda política a contestação desse modelo de universidade, excludente e elitista? Por que não reivindicar a duplicação das vagas na graduação, simultaneamente à implantação de cotas sociais e étnicas?  Essas bandeiras certamente irritariam a opinião pública conservadora, mas seriam capazes de angariar apoios importantes, como o do movimento negro e dos milhares de estudantes das escolas públicas.  A encarniçada luta contra a polícia, que é uma falsa agenda, facilitou que setores ressentidos, anti-intectuais e retrógrados jogassem ao vento, com grande aceitação, a tese de que os alunos da USP só querem “fumar maconha”. Do outro lado, por que o governo do Estado e a Reitoria, que falam com pompa e circunstância em “Estado democrático”, ao invés de crivar a cidade universitária de policiais, e invadi-la de modo espetaculoso e desnecessário, não iniciam um movimento que vise a urbanização do campus, implantando novos cursos e ampliando as vagas disponíveis, através da criação de instrumentos de inclusão (como muitas universidades vêm fazendo)?  Instrumentos como esses demandariam mais prédios e novas residências estudantis, tornando a cidade universitária parte da cidade, literal e metaforicamente. Alguém poderia objetar que isso demandaria investimentos e teria de caber no orçamento. Claro que sim. Mas se a universidade alocasse melhor seus próprios recursos e talentos – como seus doutorandos, os professores aposentados, os funcionários mal aproveitados – poderia ampliar a oferta de vagas na graduação, sem ampliar dramaticamente as despesas de custeio, por exemplo. Sem romper o primado do mérito, é preciso mobilizar a energia criativa a fim de derrubar os muros do atraso e do imobilismo. Isso faria da USP uma instituição mais aberta, mais simpática e mais democrática ao conjunto da sociedade.
            Mais do que o estéril debate acerca da polícia, é preciso repensar os signos que regem a Universidade, que precisa estar à altura de outro Brasil que vai nascendo, pós-ditadura, filho da Constituição de 1988 e da renovação institucional, econômica, política e social que a vida brasileira vem experimentando desde então.  É preciso mais democracia para dentro e para fora do campus. A universidade brasileira, sem romper o primado do mérito deve ser a nova fronteira na luta contra a demofobia e a secular desigualdade, tão próprias de uma sociedade construída sob a égide da escravidão. A USP, de tão extraordinários serviços prestados, precisa se engajar nos desafios do seu tempo e de seu país. 

Índios, jesuítas e bandeirantes: São Paulo nos idos do século XVII

Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 98
Alberto Luiz Schneider

Nenhum brasileiro ou estrangeiro que viva ou visite São Paulo pode ignorar uma palavra e seus derivados: bandeirantes. Mesmo se a pessoa não tiver lembranças escolares das mitológicas figuras dos desbravadores paulistas, terá ao menos viajado pelas rodovias Anhanguera, Bandeirantes, Raposo Tavares ou Fernão Dias; passado pela avenida dos Bandeirantes ou pela ponte das Bandeiras; contemplado o   Monumento às Bandeiras, a estátua de Borba Gato ou o Palácio dos Bandeirantes.
E se a pessoa tiver algum requinte de cultura e curiosidade histórica certamente visitará o Museu do Ipiranga, onde terá de conviver com uma legião de bandeirantes pintados, esculpidos e narrados nas obras do acervo da instituição, sempre fortes, másculos, brancos de feição ibérica, retratados como representantes de uma “raça de gigantes”, como os designou o historiador paulista Alfredo Ellis Jr.
Mas quem foram, afinal, os bandeirantes? Não os de pedra, mas os de carne e osso, que viveram no longínquo século XVII, o tempo áureo das bandeiras? Não é possível entendê-los sem compreender o tempo e o mundo em que viveram e se defrontaram com os outros personagens dessa história: os índios e os jesuítas. 
Tudo havia começado ainda no litoral, mas ganhou impulso com a fundação do Colégio dos Jesuítas, que em 1554 estabeleceu no planalto de Piratininga o primeiro núcleo colonial português no interior do continente. Em 1560, o povoado ganhou uma Câmara e se tornou a vila de São Paulo de Piratininga, que se tornaria o ponto de partida para a ocupação de vastas porções da América do Sul nos séculos seguintes.
Aos poucos, colonos portugueses começaram a se fixar na região, tomando posse de porções de terra concedidas pela Coroa – as sesmarias, medidas em léguas –, ou pela Câmara – as datas de terra, medidas em braças. Logo, porém, surgiu um problema: como plantar sem homens? Os paulistas do século XVI, ainda antes de subir a serra do Mar, tinham encontrado nos nativos da região o “remédio para seus males”.
Ao contrário dos senhores de engenho da Bahia e de Pernambuco, que tinham no açúcar um produto de alto valor comercial e podiam importar escravos negros, os modestos paulistas não dispunham de recursos para tanto. Apesar dos obstáculos à escravidão indígena – tais como a obstinada resistência dos autóctones, a firme oposição dos jesuítas e a posição ambígua da Coroa – os colonos foram, ao poucos, elaborando um sistema produtivo assentado na servidão indígena.
Os primeiros povoadores portugueses da Capitania de São Vicente eram majoritariamente homens. O cronista Pero Magalhães Gandavo, por volta de 1570, afirma que parte considerável dos moradores da vila de São Paulo era formada por filhos de índias e brancos. Os mamelucos, mesmo bastardos, já não eram mais “selvagens” e, nos primeiros tempos, gozavam de status muito próximo ao dos brancos.
Diferentemente das índias, apenas concubinas ou mesmo escravas, as mulheres mamelucas casaram, formalmente, com portugueses, dando origem a antigos troncos familiares. O padre jesuíta Manuel da Nóbrega afirma que João Ramalho – um português que naufragara na costa de São Vicente e vivera entre os índios – “tinha filhas casadas com os principais homens” da capitania.
Nos testamentos dos antigos paulistas dos séculos XVI e XVII não era raro que o moribundo deixasse alguns bens para os filhos ilegítimos, mamelucos. Os inventários da época, que demonstram os afetos dos antigos paulistas à beira da morte, também exibem seu senso de propriedade, pois, embora El-Rei declarasse que todos os gentios fossem livres “conforme o direito”, os paulistas os utilizavam como cativos, inclusive deixando-os como herança, afirma o escritor José de Alcântara Machado em seu livro
Vida e morte do bandeirante
Com seus saberes e práticas indígenas, os mamelucos foram vitais para a adaptação dos portugueses à terra, contribuindo para a formação de uma cultura própria, dotada de uma espécie de consciência de si. Os paulistas desenvolveram, a partir da contribuição indígena, padrões tecnológicos apropriados à vida na floresta que iam desde a maneira de andar na selva até o modo de caçar e de preparar os alimentos. Havia sertanistas, em geral mamelucos, que serviam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” – uma língua indígena de origem tupi –, transitando entre o mundo indígena e o português.
Conhecimentos de origem nativa foram cruciais para a sobrevivência no sertão, tais como métodos de localização por meio da observação dos movimentos do sol e dos astros; técnicas de caça, pesca e construção de embarcações; sistemas de comunicação por meio do fogo; e o conhecimento da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos.
Os paulistas, diz Sérgio Buarque de Holanda, sucumbiriam na floresta se usassem um sistema de sinalização convencional, o que os obrigou a cultivar “um espírito de observação permanentemente desperto, o que só se desenvolve ao contato prolongado com a vida nas selvas. Essa espécie de rústico alfabeto, unicamente acessível a indivíduos educados na existência andeja do sertanista, requer qualidades pessoais que dificilmente se improvisam”, afirma o historiador paulista em seu livro
Caminhos e fronteiras
Os bandeirantes levavam na bagagem apenas cabaças de sal e pães duros, feitos de “farinha de guerra” (de mandioca ou de milho) e completavam sua alimentação com a caça e a pesca, incorporando ao cardápio alimentos tirados da terra: frutas silvestres, palmitos, ovos de jabuti e uma infinidade de outros víveres do mato. Outra fonte de comida eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas. Muitas vezes os paulistas deixavam, na ida, roçados que, na volta, tornavam-se vital  para sobrevivência na floresta. As bandeiras, carregadas de índios presos, demandavam por alimentos para que os cativos chegassem vivos a São Paulo.
A partir de 1570 a Coroa portuguesa baixou uma nova legislação segundo a qual os indígenas só poderiam ser atacados e aprisionados por “guerra justa”. A medida foi uma resposta a pressões da Igreja, sobretudo dos jesuítas, e tornou a vida dos paulistas um pouco mais complicada, mas não acabou com a caça aos nativos.
Entre as  maiores, mais célebres (e mais trágicas) bandeiras estão as expedições sertanistas que destruíram as reduções do Guairá, localizadas em uma área hoje pertencente ao estado do Paraná onde os jesuítas espanhóis haviam fundado, a partir de 1609, várias missões ao longo dos vales dos rios Paraná, Iguaçu, Piquiri, Ivaí, Paranapanema e Tibagi. A região já estava em disputa entre portugueses de São Paulo e os espanhóis do Paraguai, ambos interessados na mão-de-obra indígena, quando os jesuítas ali se instalaram, aumentando a competição pelos índios.
Os padres da Companhia de Jesus – fossem espanhóis ou portugueses (ou mesmo italianos) – não deviam lealdades aos seus respectivos monarcas, mas ao papa e ao próprio projeto evangelizador, cuja missão era reduzi-los à fé cristã e ao catolicismo. Nas fazendas dos paulistas ou nas encomiendas castelhanas, os índios eram objeto de cobiça.
Na primeira metade do século XVII, eram os homens e não as terras que estavam em disputa. Os índios guaranis eram o grande objeto do ávido interesse tanto dos colonos quanto dos jesuítas, embora na região do Guairá houvesse também outras etnias. A reputação de bons agricultores tornava os guaranis particularmente atraentes aos paulistas.
Embora disputassem índios, os castelhanos do Paraguai e os paulistas tinham em comum um profundo ódio dos jesuítas, que os unia apesar dos eventuais conflitos de interesses entre suas respectivas pátrias de origem. As ambições comuns os levaram a manter um comércio ininterrupto na região. Os lusos vendiam produtos europeus e asiáticos, além de escravos negros trazidos do litoral, e compravam prata, que jorrava de Potosí.  
Essa cooperação ficou clara durante a União Ibérica (1580-1640), período em que as Coroas de Portugal e Espanha foram concentradas nas mãos dos reis espanhóis. Nessa época, apesar da proibição do comércio entre as colônias lusas e hispânicas, os paulistas demonstraram tamanha boa-vontade com os castelhanos que propuseram a abertura de um caminho entre São Paulo e o Paraguai, como mostra a ata da Câmara da vila de São Paulo de 1603: “Pareceu bem a todos pelo proveito que se espera deste caminho se abrir e termos comércio e amizade por sermos todos cristãos e (termos) um rei comum”.
O estoque de índios guaranis, reunidos pelos padres jesuítas, atiçou a cobiça dos bandeirantes. Raposo Tavares, em 1628, liderou uma grande expedição contra as reduções do Guairá. Segundo relatos da época, talvez exagerados, a bandeira contou com 900 paulistas, entre brancos e mamelucos, e 2000 guerreiros tupis (outras fontes da época falam em números bem mais modestos).
Trata-se, de qualquer maneira, de uma das maiores bandeiras já montadas pelos paulistas até aquele momento. A violência empregada pelos sertanistas foi desvastadora. O método adotado consistia em cercar a aldeia e “persuadir” os índios a acompanhá-los até São Paulo. Segundo o relato dos jesuítas, em certos casos, os paulistas “entravam, matavam e assolavam (...) só para o terror e o espanto dos que ficavam vizinhos”.
A longa caminhada até São Paulo e outras vilas da  capitania de São Vicente era extenuante. Ainda segundo relatos dos jesuítas – cujo ódio aos paulistas era evidente –, crianças e velhos, enfermos e aleijados eram mortos para que a viagem andasse mais depressa e seus corpos dados de “comer aos seus cachorros”. Por certo os jesuítas interessavam-se em pintar os paulistas como monstros. No entanto, é inegável que os sertanistas usavam fortes “argumentos” para convencerem os índios – muitas vezes presos em ferros, especialmente os homens – para os acompanharem até São Paulo.
Entre 1628 e 1632, por meio de sucessivas bandeiras, as aldeias guaranis do Guairá foram dizimadas. Das quinze reduções, 13 foram destruídas e duas deslocadas mais para o sul, nas proximidades do rio Uruguai. Apesar da imprecisão dos números, o historiador John Manuel Monteiro estima, em seu livro Negros da Terra, que entre 30 mil e 60 mil índios foram capturados no Guairá (para os jesuítas os números chegariam a 300 mil). Ninguém sabe quantos chegaram vivos a São Paulo.
Esgotado o manancial de índios de Guairá, os paulistas avançaram sobre as reduções do Tape, no atual estado do Rio Grande do Sul. A província de Tape era, como a do Guairá, recente, mas reunia milhares de guaranis. Das seis reduções, três foram destruídas até 1638. Raposo Tavares e Fernão Dias Pais, bem como outros sertanistas de menor renome, participaram das entradas que, desta vez, encontraram feroz resistência dos índios.
O ano de 1641 marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas do sul. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros foi derrotada pelos índios guaranis armados e apoiados pela Missão de São Francisco Xavier (na atual província de Misiones, na Argentina). Contribuiu para a derrota paulista o fato dos jesuítas buscarem apoio do governador-geral do Brasil, do então rei da Espanha e de Portugal, Felipe IV, e até do Papa. O Sumo Pontífice chegou condenar os paulistas, empregando termos duríssimos, o que repercutiu negativamente em Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, aplacando temporariamente o ânimo dos bandeirantes.
Entre 1648 e 1676 os bandeirantes voltaram a atacar os guaranis no sul, mas sem a força e o alcance de outrora. Desta vez, as bandeiras mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região onde hoje fica Minas Gerias e o Centro-Oeste do Brasil. As bandeiras, agora, eram menores, geralmente organizadas por potentados, ou mesmo senhores paulistas menos afortunados, que reuniam seus parentes, seus índios mansos e se lançavam ao sertão.
Talvez a última bandeira de grandes proporções tenha sido a de Raposo Tavares, que em 1648 atacou as reduções jesuítas do Itatim, onde hoje fica o Mato Grosso do Sul. O historiador português Jaime Cortesão definiu esse empreendimento como “a maior bandeira do maior bandeirante”. Raposo Tavares e seus companheiros do Itatim percorreram milhares de quilômetros, atingindo o rio Madeira, e daí o Amazonas, terminando a expedição em Belém do Pará, após vagarem por três anos na floresta. Quando o “maior bandeirante” voltou a São Paulo, estava envelhecido e desfigurado, a ponto de seus parentes não o reconhecerem.
A história dos bandeirantes ainda teve outros capítulos dramáticos, como a luta dos homens de Domingos Jorge Velho contra o Quilombo dos Palmares, em 1695, no atual território de Pernambuco e Alagoas. Ou ainda, na mesma época, a guerra contra os índios no sertão do São Francisco. A descoberta de ouro, também no final do século XVII, na região onde veio a ser Minas Gerais, serviu para alimentar a tese que os velhos paulistas foram os construtores do território brasileiro.
A historiografia tradicional, representada por autores como Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr. e o próprio Jaime Cortesão, alimentou a tese de que os bandeirantes paulistas “recuaram o meridiano de Tordesilhas” e foram vitais para o alargamento das fronteiras do país. Que as fronteiras do Brasil se fixaram muito além de Tordesilhas é fato, para qual os bandeirantes tiveram, decerto, determinada importância, mas certamente involuntária. Em pleno século XVII, esses exploradores não estavam a serviço da formação territorial do Brasil (que não existia como país), nem agiam por razões geopolíticas. Nem mesmo estavam em busca de território, mas sim de índios, para usá-los como escravos, pois deles, em larga medida, dependiam.
Para saber mais:
História de São Paulo Colonial. Maria Beatriz Nizza da Silva (org.). Editora da Unesp, 2008
Vida e morte do bandeirante. Alcântara Machado. Imprensa Oficial, 2006
Caminhos e fronteiras. Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, 2001
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. John Manuel Monteiro. Companhia das Letras, 1994
Raposo Tavarese a formação territorial do Brasil.  Jaime Cortesão. Imprensa Nacional, 1958