quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A USP e o jogo dos erros

A Universidade de São Paulo – a melhor da América Latina, segundo ranking divulgado pelo Quacquarelli Symonds, instituto britânico especializado em educação – encontra-se conflagrada. Não é apenas a comunidade universitária que vive momentos de intensa agitação, também a opinião pública tem se entregado ao debate que, não raro, resvala para o preconceito, o ressentimento e a hiper sensibilidade ideológica, provenientes dos mais variados espectros políticos. Para que o debate avance, é necessário coragem para superar dogmas de marcada coloração ideológica e ir além do binômio polícia/maconha.  (Lembremos que a paixão por verdades universalistas é o que aproxima o radicalismo de direita e esquerda).
            Uma das razões que disparou o imbróglio foi a oposição à presença da polícia no campus, posição liderada pela extrema esquerda estudantil. É absolutamente legítima a contestação aos métodos da Polícia Militar, cujo histórico de truculência é imenso, dentro, mas principalmente fora da universidade. Trata-se de uma polícia criada e educada na ditadura, obsoleta, em uma sociedade democrática. Não é, porém, o campus da USP que necessita de outra polícia, mas o estágio civilizatório que a democracia brasileira alcançou que demanda um novo sistema de segurança, cuja atuação seja pautada pelos direitos humanos e pela eficiência policial.
Dito isto, é preciso dizer com coragem que o pleito de uma parte dos estudantes, que não admitem a polícia no campus, é ilegítimo. De acordo com o Estado de Direito, não cabem zonas de privilégios (que ainda marcam tão visceralmente a sociedade brasileira). Por isso, é constrangedor que setores estudantis, justamente os que mais fortemente empunham bandeiras igualitárias, pleiteiem privilégios para a cidade universitária. Porque os estudantes da USP, em geral brancos e bem-nascidos, teriam o “direito” de não sofrerem os constrangimentos da polícia paulista, enquanto os jovens em geral negros e mestiços, que vivem nas favelas próximas ao campus deveriam ser submetidos à arbitrariedade da PM? O movimento estudantil, porém, tem razão em criticar uma polícia que aborda estudantes de modo truculento, uma política viciada em abordar moradores de rua ou apenas pobres de modo humilhante, quando não pratica execuções sumárias. Convenhamos, é francamente ridículo que policiais saiam caçando estudantes fumando maconha, enquanto a cidade convive com delitos infinitamente mais graves, inclusive crimes de colarinho branco.  
Os problemas de segurança podem e devem ser enfrentados, dentro e fora do campus. Para isso, não é necessário militarizar a universidade, embora a polícia possa e deva atuar, nos marcos da lei, onde e quando for necessário, legítimo e cabível, seja na cidade universitária ou em qualquer outro lugar da urbe. É estranho que a cidade universitária tenha se tornado um dos lugares mais policiados da cidade de São Paulo. Do mesmo modo que é estranho ter uma universidade de portões fechados aos fins de semana, segregação inaceitável para uma universidade pública. A cidade universitária deve ser aberta, à polícia, à comunidade, à cidade, rechaçando qualquer exclusivismo.
Foi grave a decisão de parte dos estudantes em ocupar prédios administrativos e radicalizar o movimento. Erro tático (agravado ainda mais se considerarmos que a assembleia dos estudantes votou contra a ocupação), que serviu apenas para atiçar a mobilização dos setores mais obscurantistas da sociedade, dentro e fora da universidade, marcadamente setores da imprensa, que se colocam como porta-vozes desses setores. Adjetivações como "playboys", "bebês da USP", "delinquentes mimados" foram recorrentes em editoriais, artigos e blogs, mostrando mais ódio ressentido e ideológico do que crítica legítima aos excessos e equívocos juvenis. A tosca tentativa moralista de desqualificação atingiu o rés do chão ao se acusar os estudantes mobilizados de "ostentaram roupas de grife e automóveis novos".
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O equívoco estudantil, cometido por rapazes e moças de vinte anos, ensejou outro equívoco, cometido por senhores bem mais vividos, de quem se esperaria ponderação e responsabilidade pública. A verdadeira operação de guerra deflagrada no dia 8 de novembro, quando a PM fez a reintegração de posse da Reitoria – empregando 400 policiais, helicópteros, carros e cavalos, que resultou na prisão de 73 estudantes – foi um espetáculo grosseiro e desproporcional de força, digno da ditadura militar. Um teatro cujos responsáveis, em última instância, são o Reitor da Universidade de São Paulo e o Governador do Estado. Um espetáculo deprimente, marcado pelo espírito de vingança e a exibição de força, voltado para saciar a fantasia de “ordem” e “pureza” dos setores mais retrógrados de São Paulo, cujo ódio à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas é evidente. Não perdoam que aquela casa tenha dado ao Brasil intelectuais progressistas como Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Florestan Fernandes e Milton Santos. Uma casa que continua a produzir conhecimento crítico fundamental para democratizar a sociedade brasileira, ainda brutalmente desigual, autoritária e atrasada. 
            É necessário coragem para criticar a inconsequência da radicalização estudantil, bem como para criticar a truculência patrocinada pelo Governador e pelo Reitor, no entanto, é  preciso ir além: a radicalização autofágica que a universidade vive tem raízes na ilegitimidade da nomeação do atual Reitor. Em 2009, o então Governador de São Paulo, José Serra, ao invés de nomear o primeiro colocado na lista tríplice construída democraticamente pela comunidade universitária, nomeou João Grandino Rodas, o segundo colocado, explicitamente vinculado ao partido que comanda o Palácio dos Bandeirantes. Segundo a legislação em vigor, o Governador tem o direito de nomear um dos três indicados pelo processo eleitoral. Porém, desde 1981 – ainda no tempo da ditadura, que teima em não terminar de vez –, os governadores vinham adotando a prática democrática de nomear o primeiro da lista. Numa sociedade democrática, não há problema que o Reitor e o Governador sejam do mesmo grupo político, desde que um e outro sejam eleitos. A violência institucional e política cometida pelo ex-Governador de São Paulo, ao nomear um Reitor que tem se mostrado despreparado, autoritário e inábil no diálogo com a diversidade, está na origem do estado de guerra pelo qual a Universidade de São Paulo tem passado.
            A USP precisa reconstruir sua organização interna, de modo que reitores exerçam suas funções de modo legítimo e democrático. A melhor universidade do Brasil precisa superar o medo das eleições, do diálogo e da divergência. A Unicamp tem mecanismos internos muitos mais modernos e democráticos. A USP foi fundada sob o espírito liberal-oligárquico de 32 e parece marcada pelos seus mitos fundadores.
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Os estudantes, de um lado, fariam melhor se iniciassem um movimento por outra polícia, para si e a para a sociedade inteira. Aliás, por que o movimento estudantil não coloca no centro de sua agenda política a contestação desse modelo de universidade, excludente e elitista? Por que não reivindicar a duplicação das vagas na graduação, simultaneamente à implantação de cotas sociais e étnicas?  Essas bandeiras certamente irritariam a opinião pública conservadora, mas seriam capazes de angariar apoios importantes, como o do movimento negro e dos milhares de estudantes das escolas públicas.  A encarniçada luta contra a polícia, que é uma falsa agenda, facilitou que setores ressentidos, anti-intectuais e retrógrados jogassem ao vento, com grande aceitação, a tese de que os alunos da USP só querem “fumar maconha”. Do outro lado, por que o governo do Estado e a Reitoria, que falam com pompa e circunstância em “Estado democrático”, ao invés de crivar a cidade universitária de policiais, e invadi-la de modo espetaculoso e desnecessário, não iniciam um movimento que vise a urbanização do campus, implantando novos cursos e ampliando as vagas disponíveis, através da criação de instrumentos de inclusão (como muitas universidades vêm fazendo)?  Instrumentos como esses demandariam mais prédios e novas residências estudantis, tornando a cidade universitária parte da cidade, literal e metaforicamente. Alguém poderia objetar que isso demandaria investimentos e teria de caber no orçamento. Claro que sim. Mas se a universidade alocasse melhor seus próprios recursos e talentos – como seus doutorandos, os professores aposentados, os funcionários mal aproveitados – poderia ampliar a oferta de vagas na graduação, sem ampliar dramaticamente as despesas de custeio, por exemplo. Sem romper o primado do mérito, é preciso mobilizar a energia criativa a fim de derrubar os muros do atraso e do imobilismo. Isso faria da USP uma instituição mais aberta, mais simpática e mais democrática ao conjunto da sociedade.
            Mais do que o estéril debate acerca da polícia, é preciso repensar os signos que regem a Universidade, que precisa estar à altura de outro Brasil que vai nascendo, pós-ditadura, filho da Constituição de 1988 e da renovação institucional, econômica, política e social que a vida brasileira vem experimentando desde então.  É preciso mais democracia para dentro e para fora do campus. A universidade brasileira, sem romper o primado do mérito deve ser a nova fronteira na luta contra a demofobia e a secular desigualdade, tão próprias de uma sociedade construída sob a égide da escravidão. A USP, de tão extraordinários serviços prestados, precisa se engajar nos desafios do seu tempo e de seu país. 

Índios, jesuítas e bandeirantes: São Paulo nos idos do século XVII

Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 98
Alberto Luiz Schneider

Nenhum brasileiro ou estrangeiro que viva ou visite São Paulo pode ignorar uma palavra e seus derivados: bandeirantes. Mesmo se a pessoa não tiver lembranças escolares das mitológicas figuras dos desbravadores paulistas, terá ao menos viajado pelas rodovias Anhanguera, Bandeirantes, Raposo Tavares ou Fernão Dias; passado pela avenida dos Bandeirantes ou pela ponte das Bandeiras; contemplado o   Monumento às Bandeiras, a estátua de Borba Gato ou o Palácio dos Bandeirantes.
E se a pessoa tiver algum requinte de cultura e curiosidade histórica certamente visitará o Museu do Ipiranga, onde terá de conviver com uma legião de bandeirantes pintados, esculpidos e narrados nas obras do acervo da instituição, sempre fortes, másculos, brancos de feição ibérica, retratados como representantes de uma “raça de gigantes”, como os designou o historiador paulista Alfredo Ellis Jr.
Mas quem foram, afinal, os bandeirantes? Não os de pedra, mas os de carne e osso, que viveram no longínquo século XVII, o tempo áureo das bandeiras? Não é possível entendê-los sem compreender o tempo e o mundo em que viveram e se defrontaram com os outros personagens dessa história: os índios e os jesuítas. 
Tudo havia começado ainda no litoral, mas ganhou impulso com a fundação do Colégio dos Jesuítas, que em 1554 estabeleceu no planalto de Piratininga o primeiro núcleo colonial português no interior do continente. Em 1560, o povoado ganhou uma Câmara e se tornou a vila de São Paulo de Piratininga, que se tornaria o ponto de partida para a ocupação de vastas porções da América do Sul nos séculos seguintes.
Aos poucos, colonos portugueses começaram a se fixar na região, tomando posse de porções de terra concedidas pela Coroa – as sesmarias, medidas em léguas –, ou pela Câmara – as datas de terra, medidas em braças. Logo, porém, surgiu um problema: como plantar sem homens? Os paulistas do século XVI, ainda antes de subir a serra do Mar, tinham encontrado nos nativos da região o “remédio para seus males”.
Ao contrário dos senhores de engenho da Bahia e de Pernambuco, que tinham no açúcar um produto de alto valor comercial e podiam importar escravos negros, os modestos paulistas não dispunham de recursos para tanto. Apesar dos obstáculos à escravidão indígena – tais como a obstinada resistência dos autóctones, a firme oposição dos jesuítas e a posição ambígua da Coroa – os colonos foram, ao poucos, elaborando um sistema produtivo assentado na servidão indígena.
Os primeiros povoadores portugueses da Capitania de São Vicente eram majoritariamente homens. O cronista Pero Magalhães Gandavo, por volta de 1570, afirma que parte considerável dos moradores da vila de São Paulo era formada por filhos de índias e brancos. Os mamelucos, mesmo bastardos, já não eram mais “selvagens” e, nos primeiros tempos, gozavam de status muito próximo ao dos brancos.
Diferentemente das índias, apenas concubinas ou mesmo escravas, as mulheres mamelucas casaram, formalmente, com portugueses, dando origem a antigos troncos familiares. O padre jesuíta Manuel da Nóbrega afirma que João Ramalho – um português que naufragara na costa de São Vicente e vivera entre os índios – “tinha filhas casadas com os principais homens” da capitania.
Nos testamentos dos antigos paulistas dos séculos XVI e XVII não era raro que o moribundo deixasse alguns bens para os filhos ilegítimos, mamelucos. Os inventários da época, que demonstram os afetos dos antigos paulistas à beira da morte, também exibem seu senso de propriedade, pois, embora El-Rei declarasse que todos os gentios fossem livres “conforme o direito”, os paulistas os utilizavam como cativos, inclusive deixando-os como herança, afirma o escritor José de Alcântara Machado em seu livro
Vida e morte do bandeirante
Com seus saberes e práticas indígenas, os mamelucos foram vitais para a adaptação dos portugueses à terra, contribuindo para a formação de uma cultura própria, dotada de uma espécie de consciência de si. Os paulistas desenvolveram, a partir da contribuição indígena, padrões tecnológicos apropriados à vida na floresta que iam desde a maneira de andar na selva até o modo de caçar e de preparar os alimentos. Havia sertanistas, em geral mamelucos, que serviam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” – uma língua indígena de origem tupi –, transitando entre o mundo indígena e o português.
Conhecimentos de origem nativa foram cruciais para a sobrevivência no sertão, tais como métodos de localização por meio da observação dos movimentos do sol e dos astros; técnicas de caça, pesca e construção de embarcações; sistemas de comunicação por meio do fogo; e o conhecimento da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos.
Os paulistas, diz Sérgio Buarque de Holanda, sucumbiriam na floresta se usassem um sistema de sinalização convencional, o que os obrigou a cultivar “um espírito de observação permanentemente desperto, o que só se desenvolve ao contato prolongado com a vida nas selvas. Essa espécie de rústico alfabeto, unicamente acessível a indivíduos educados na existência andeja do sertanista, requer qualidades pessoais que dificilmente se improvisam”, afirma o historiador paulista em seu livro
Caminhos e fronteiras
Os bandeirantes levavam na bagagem apenas cabaças de sal e pães duros, feitos de “farinha de guerra” (de mandioca ou de milho) e completavam sua alimentação com a caça e a pesca, incorporando ao cardápio alimentos tirados da terra: frutas silvestres, palmitos, ovos de jabuti e uma infinidade de outros víveres do mato. Outra fonte de comida eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas. Muitas vezes os paulistas deixavam, na ida, roçados que, na volta, tornavam-se vital  para sobrevivência na floresta. As bandeiras, carregadas de índios presos, demandavam por alimentos para que os cativos chegassem vivos a São Paulo.
A partir de 1570 a Coroa portuguesa baixou uma nova legislação segundo a qual os indígenas só poderiam ser atacados e aprisionados por “guerra justa”. A medida foi uma resposta a pressões da Igreja, sobretudo dos jesuítas, e tornou a vida dos paulistas um pouco mais complicada, mas não acabou com a caça aos nativos.
Entre as  maiores, mais célebres (e mais trágicas) bandeiras estão as expedições sertanistas que destruíram as reduções do Guairá, localizadas em uma área hoje pertencente ao estado do Paraná onde os jesuítas espanhóis haviam fundado, a partir de 1609, várias missões ao longo dos vales dos rios Paraná, Iguaçu, Piquiri, Ivaí, Paranapanema e Tibagi. A região já estava em disputa entre portugueses de São Paulo e os espanhóis do Paraguai, ambos interessados na mão-de-obra indígena, quando os jesuítas ali se instalaram, aumentando a competição pelos índios.
Os padres da Companhia de Jesus – fossem espanhóis ou portugueses (ou mesmo italianos) – não deviam lealdades aos seus respectivos monarcas, mas ao papa e ao próprio projeto evangelizador, cuja missão era reduzi-los à fé cristã e ao catolicismo. Nas fazendas dos paulistas ou nas encomiendas castelhanas, os índios eram objeto de cobiça.
Na primeira metade do século XVII, eram os homens e não as terras que estavam em disputa. Os índios guaranis eram o grande objeto do ávido interesse tanto dos colonos quanto dos jesuítas, embora na região do Guairá houvesse também outras etnias. A reputação de bons agricultores tornava os guaranis particularmente atraentes aos paulistas.
Embora disputassem índios, os castelhanos do Paraguai e os paulistas tinham em comum um profundo ódio dos jesuítas, que os unia apesar dos eventuais conflitos de interesses entre suas respectivas pátrias de origem. As ambições comuns os levaram a manter um comércio ininterrupto na região. Os lusos vendiam produtos europeus e asiáticos, além de escravos negros trazidos do litoral, e compravam prata, que jorrava de Potosí.  
Essa cooperação ficou clara durante a União Ibérica (1580-1640), período em que as Coroas de Portugal e Espanha foram concentradas nas mãos dos reis espanhóis. Nessa época, apesar da proibição do comércio entre as colônias lusas e hispânicas, os paulistas demonstraram tamanha boa-vontade com os castelhanos que propuseram a abertura de um caminho entre São Paulo e o Paraguai, como mostra a ata da Câmara da vila de São Paulo de 1603: “Pareceu bem a todos pelo proveito que se espera deste caminho se abrir e termos comércio e amizade por sermos todos cristãos e (termos) um rei comum”.
O estoque de índios guaranis, reunidos pelos padres jesuítas, atiçou a cobiça dos bandeirantes. Raposo Tavares, em 1628, liderou uma grande expedição contra as reduções do Guairá. Segundo relatos da época, talvez exagerados, a bandeira contou com 900 paulistas, entre brancos e mamelucos, e 2000 guerreiros tupis (outras fontes da época falam em números bem mais modestos).
Trata-se, de qualquer maneira, de uma das maiores bandeiras já montadas pelos paulistas até aquele momento. A violência empregada pelos sertanistas foi desvastadora. O método adotado consistia em cercar a aldeia e “persuadir” os índios a acompanhá-los até São Paulo. Segundo o relato dos jesuítas, em certos casos, os paulistas “entravam, matavam e assolavam (...) só para o terror e o espanto dos que ficavam vizinhos”.
A longa caminhada até São Paulo e outras vilas da  capitania de São Vicente era extenuante. Ainda segundo relatos dos jesuítas – cujo ódio aos paulistas era evidente –, crianças e velhos, enfermos e aleijados eram mortos para que a viagem andasse mais depressa e seus corpos dados de “comer aos seus cachorros”. Por certo os jesuítas interessavam-se em pintar os paulistas como monstros. No entanto, é inegável que os sertanistas usavam fortes “argumentos” para convencerem os índios – muitas vezes presos em ferros, especialmente os homens – para os acompanharem até São Paulo.
Entre 1628 e 1632, por meio de sucessivas bandeiras, as aldeias guaranis do Guairá foram dizimadas. Das quinze reduções, 13 foram destruídas e duas deslocadas mais para o sul, nas proximidades do rio Uruguai. Apesar da imprecisão dos números, o historiador John Manuel Monteiro estima, em seu livro Negros da Terra, que entre 30 mil e 60 mil índios foram capturados no Guairá (para os jesuítas os números chegariam a 300 mil). Ninguém sabe quantos chegaram vivos a São Paulo.
Esgotado o manancial de índios de Guairá, os paulistas avançaram sobre as reduções do Tape, no atual estado do Rio Grande do Sul. A província de Tape era, como a do Guairá, recente, mas reunia milhares de guaranis. Das seis reduções, três foram destruídas até 1638. Raposo Tavares e Fernão Dias Pais, bem como outros sertanistas de menor renome, participaram das entradas que, desta vez, encontraram feroz resistência dos índios.
O ano de 1641 marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas do sul. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros foi derrotada pelos índios guaranis armados e apoiados pela Missão de São Francisco Xavier (na atual província de Misiones, na Argentina). Contribuiu para a derrota paulista o fato dos jesuítas buscarem apoio do governador-geral do Brasil, do então rei da Espanha e de Portugal, Felipe IV, e até do Papa. O Sumo Pontífice chegou condenar os paulistas, empregando termos duríssimos, o que repercutiu negativamente em Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, aplacando temporariamente o ânimo dos bandeirantes.
Entre 1648 e 1676 os bandeirantes voltaram a atacar os guaranis no sul, mas sem a força e o alcance de outrora. Desta vez, as bandeiras mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região onde hoje fica Minas Gerias e o Centro-Oeste do Brasil. As bandeiras, agora, eram menores, geralmente organizadas por potentados, ou mesmo senhores paulistas menos afortunados, que reuniam seus parentes, seus índios mansos e se lançavam ao sertão.
Talvez a última bandeira de grandes proporções tenha sido a de Raposo Tavares, que em 1648 atacou as reduções jesuítas do Itatim, onde hoje fica o Mato Grosso do Sul. O historiador português Jaime Cortesão definiu esse empreendimento como “a maior bandeira do maior bandeirante”. Raposo Tavares e seus companheiros do Itatim percorreram milhares de quilômetros, atingindo o rio Madeira, e daí o Amazonas, terminando a expedição em Belém do Pará, após vagarem por três anos na floresta. Quando o “maior bandeirante” voltou a São Paulo, estava envelhecido e desfigurado, a ponto de seus parentes não o reconhecerem.
A história dos bandeirantes ainda teve outros capítulos dramáticos, como a luta dos homens de Domingos Jorge Velho contra o Quilombo dos Palmares, em 1695, no atual território de Pernambuco e Alagoas. Ou ainda, na mesma época, a guerra contra os índios no sertão do São Francisco. A descoberta de ouro, também no final do século XVII, na região onde veio a ser Minas Gerais, serviu para alimentar a tese que os velhos paulistas foram os construtores do território brasileiro.
A historiografia tradicional, representada por autores como Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr. e o próprio Jaime Cortesão, alimentou a tese de que os bandeirantes paulistas “recuaram o meridiano de Tordesilhas” e foram vitais para o alargamento das fronteiras do país. Que as fronteiras do Brasil se fixaram muito além de Tordesilhas é fato, para qual os bandeirantes tiveram, decerto, determinada importância, mas certamente involuntária. Em pleno século XVII, esses exploradores não estavam a serviço da formação territorial do Brasil (que não existia como país), nem agiam por razões geopolíticas. Nem mesmo estavam em busca de território, mas sim de índios, para usá-los como escravos, pois deles, em larga medida, dependiam.
Para saber mais:
História de São Paulo Colonial. Maria Beatriz Nizza da Silva (org.). Editora da Unesp, 2008
Vida e morte do bandeirante. Alcântara Machado. Imprensa Oficial, 2006
Caminhos e fronteiras. Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, 2001
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. John Manuel Monteiro. Companhia das Letras, 1994
Raposo Tavarese a formação territorial do Brasil.  Jaime Cortesão. Imprensa Nacional, 1958

A invenção (intelectual) de Brasília


Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 78
Alberto Luiz Schneider
A história normalmente começa antes do que parece. Brasília como idéia, projeto e sonho, nasceu antes do presidente Juscelino Kubitschek tomar a decisão política de erguer a nova capital no meio do nada. Muitíssimo antes dos traços modernistas de Lucio Costa e Oscar Niemeyer serem esboçados, Brasília foi desejada e imaginada, desde os primórdios da Independência.
Ao contrário do que convencionalmente se imagina, JK não inventou Brasília – a cidade que em 2010 comemora 50 anos –, apenas a construiu, cumprindo um preceito constitucional, que previa a transferência da capital do país para o centro geográfico do imenso território brasileiro.
Brasília é a materialização de um velho projeto, cuja idéia remonta a ninguém menos que José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o Patriarca da Independência. Em um panfleto chamado "Aditamento ao projeto de Constituição para fazê-lo aplicável ao Reino do Brasil", publicado em Lisboa, em 1822, Bonifácio propôs a construção de uma nova capital: "No centro do Brasil, entre as nascentes dos confluentes do Paraguai e Amazonas, fundar-se-á a capital desse Reino, com a denominação de Brasília".
Após  a efetivação da Independência, da qual fora um dos artífices, Bonifácio tornou-se presidente da primeira Assembléia Constituinte de nossa história, em 1823, onde defendeu, entre outras idéias, a abolição do tráfico negreiro, a instrução pública, a fundação de uma universidade, uma reforma agrária e a construção  "de uma nova capital do Império no interior do Brasil, em uma das vertentes do rio São Francisco, que poderá chamar-se Petrópole ou Brasília..."
Houve manifestações dessa natureza ainda antes das proposições de Bonifácio. Hipólito José da Costa (1774-1823) publicou, a partir de 1813, no Correio Braziliense – veículo de sua propriedade e considerado o primeiro jornal brasileiro, embora publicado em Londres –, vários artigos em que reivindicou "a interiorização da capital do Brasil, próxima às vertentes dos caudalosos rios que se dirigem para o norte, sul e nordeste". Obviamente José Bonifácio conhecia as idéias de Hipólito que, como ele, era um intelectual liberal e progressista para os padrões da época.
O tema voltou à baila através da pena do historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), que ao longo de sua vida intelectual escreveu diversas vezes sobre o assunto. Em 1849, em uma carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, intitulada #Memorial orgânico#, o historiador enumerou argumentos em favor de uma capital no interior do continente.
O texto mais importante de Varnhagen, porém, é #A questão da capital: marítima ou no interior?#, publicado em 1877, quando era embaixador em Viena. Novamente, ele teceu as virtudes do projeto de erguer uma capital no centro do país. Narrou ainda sua viagem ao sertão de Goiás e apontou o local que lhe pareceu mais apropriado à construção da "futura capital da União Brasílica”, localizado no “triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre d'Armas, das quais manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata". O local é muito próximo aonde de fato Brasília viria a ser construída.
República
No contexto da Proclamação da República, a idéia de se construir uma capital no meio do Brasil reapareceu. O artigo terceiro da constituição republicana de 1891, proposto pelo constituinte catarinense Lauro Müller, estabeleceu o seguinte: "Fica pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.000 km2, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal".
O Presidente Floriano Peixoto, atendendo às suas inclinações nacionalistas, deu consequência ao postulado constitucional, criando a “Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil” – que durou de junho de 1892 a março de 1893 – e foi liderada pelo astrônomo belga, radicado no Brasil, Louis Ferdinand Cruls.
A partir dos trabalhos da Comissão, formada por médicos, botânicos, astrônomos, geólogos, estavam dadas as condições para que “Brasília” aparecesse no #Pequeno Atlas do Brasil#, de 1922.  Assim, 35 anos antes do início das obras, a futura capital do Brasil apareceu no mapa, no interior de Goiás, praticamente no lugar em que seria construída.
A antiga idéia, como não poderia deixar de ser, reapareceu na Constituição de 1934, embora o projeto não tenha avançado, em função da turbulência daqueles anos difíceis. No entanto, o projeto reapareceu no artigo quarto das disposições transitórias da constituição de 1946. Getúlio Vargas, então presidente eleito, criou por decreto, em 1953, a “Comissão de Localização”, presidida pelo general José Pessoa, cujos trabalhos transcorreram ao longo de 1954.
Em dezembro de 1955 – ainda sob presidência temporária de Nereu Ramos e poucas semanas antes da posse do presidente eleito JK–  foi baixado o decreto n° 38.261, constituindo a “Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal”. Já sob a presidência de JK, em 19 de setembro de 1956 foi lançado o concurso nacional do Plano Piloto de Brasília.
Depois de várias especulações – se cogitou a hipótese de erguer Brasília no Triângulo Mineiro – a opção recaiu sobre o “Quadrilátero Cruls”, já proposto em 1893, cuja localização coincide com o local onde Lúcio Costa e Oscar Niemeyer finalmente projetaram a cidade.
Marcha para o Oeste
Quando JK tomou posse, o país havia assistido alguns esforços em ocupar o interior do território nacional. Ainda no começo do século XX, o marechal Cândido Rondon desbravou o oeste brasileiro, levando a cabo a tarefa de implantar telégrafos que ligassem os estados de Mato Grosso, Amazonas e Acre ao restante do país. Entre 1907 e 1917, a expedição estendeu 2.200 km de linhas telegráficas.
A conquista do Brasil continuou na década de 1940. Getúlio Vargas criou a Marcha para o Oeste”, a fim de incentivar a ocupação do centro-oeste. A Expedição Roncador-Xingu foi planejada para conquistar e desbravar o coração do Brasil. Iniciada em 1943 e liderada pelos irmãos Villas Bôas, a expedição adentrou o Brasil central, chegando até a Amazônia,  travando contato com diversas etnias indígenas ainda desconhecidas.
Naquele  momento o início da década de 40 a grande maioria dos 43 milhões de brasileiros se concentrava no litoral ou próxima dele. A construção de Brasília faz parte de um movimento histórico cujo objetivo maior foi ocupar o vasto território brasileiro.
Até meados do século XX, o Brasil ainda era, metaforicamente, um “arquipélago”, pois sequer havia estradas que conectassem as diferentes regiões do país. A Belém-Brasilia, iniciada só nos anos 50, praticamente junto com as obras da nova capital, foi a primeira rodovia digna desse nome entre a Amazônia e o restante do país.
Brasília, poranto, deveria contribuir para a interiorização da população brasileira, facilitando a integração física do território nacional. Era o Brasil empenhado em ocupar o Brasil, dando vazão às antigas formulações de José Bonifácio Andrade e Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen, em pleno século XIX.
Brasília, Brasil
Brasília encerra idéias importantes, como as de integrar e modernizar o país e a de construir uma nação a partir de um projeto, e não ao deus-dará. Mas também simboliza a corrupção que marcou sua construção, os negócios escusos entre empreiteiras e o Estado, e a existência do poder central longe da maioria dos brasileiros e da pressão das ruas.
A capital, contudo, também simboliza uma “vontade de nação”. A cidade é portadora de um projeto de país, de uma idéia de grandeza. Niemeyeir a vestiu com linhas modernas. E ainda que  os prédios em traços algongados e curvos carreguem imperfeições, dificultem a vida e pareçam artificiais, a cidade encerra idéias de beleza, inclusão, e convivência.
Ambigua, torta, bela e longe da maioria do brasileiros, Brasília é brasileiríssima.


Língua Portuguesa: a mestiça e vibrante filha do latim

Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 70
Alberto Luiz Schneider

Um dia, o idioma de Luís de Camões, com seu exótico terminativo “ão”, saiu de um pequeno pedaço da Península Ibérica e se esparramou pelo mundo, inclusive por metade da América do Sul. Cumpria assim uma pequena etapa de uma peripécia atlântica que, até aqui, já envolveu aproximadamente 230 milhões de pessoas espalhadas por quatro continentes: Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.  
A última flor do Lácio, como graciosamente Olavo Bilac referiu-se à língua, é uma espécie de documento vivo, vibrante e mestiço da história humana. Seu percurso começa no Império Romano, passando depois pela Universidade de Coimbra, pelas grandes navegações e pela aventura moderna que conectou Europa, América e África.
O português é uma das línguas neolatinas, como o italiano, o espanhol, o romeno e o francês – as filhas orgulhosas do velho latim. Como língua viva, o latim falado no Império Romano extinguiu-se em torno dos anos 500 a 600 dc. Findo o Império, porém, as populações que o falavam ativamente não adotaram nenhum outro idioma.
Assim, o latim assumiu outras feições, modificando-se de modo autônomo em cada uma das províncias européias de Roma, dando à luz dialetos muito próximos da língua-mãe. Na Lusitânia brotou o galaico-português. Na Hispânia, o castelhano, entre outros idiomas ibéricos. Na Gália, o francês e ainda outras línguas, como provençal. Várias formas de italianos surgiram na Península itálica.
O português descende do latim falado nos primeiros séculos depois de Cristo por soldados, camponeses e comerciantes. Eles usavam uma língua dita vulgar, já consideravelmente diferente do latim literário empregado por Cícero ou Virgilio. Ironicamente, esse latim clássico, do Império Romano pagão, sobreviveria durante toda a Idade Média na Europa Ocidental como a língua oficial da Igreja cristã, a dar unidade lingüística e cultural para todo o continente. Esse latim eclesiástico também teve sua própria dicção
O movimento histórico do idioma nesse período foi curioso e algo contraditório: enquanto um latim vulgar declinava junto com o Império que o expandiu, um outro, o culto, ascendia como a língua eclesiástica, pouco a pouco superando o grego, em que foi escrito o Novo Testamento.
A língua adotada pela Igreja também viria a influenciar a consolidação dos modernos idiomas neolatinos, emprestando palavras e expressões eruditas a escritores e pensadores a partir dos séculos XIV, XV e XVI. Já havia, então, Dante Alighieri escrevendo em italiano. Luís de Camões em português. Miguel de Cervantes, em castelhano. Michel de Montaigne, em francês.
Nesse momento histórico, a Renascença, apesar de todo o culto à antiguidade clássica, foi um verdadeiro viveiro de línguas, selando o destino do latim que – como estrela morta – continuou a brilhar na noite dos tempos através das suas filhas, as línguas neolatinas.
A língua do povo
Em torno do ano 1000, o galaico-português – falado no norte de Portugal e na Galícia – começou a se expandir ao sul e, lentamente, a se dividir, embora ainda hoje o galego e o português sejam muito próximos. O idioma do Condado Portucalense, mais tarde Reino de Portugal, recebeu influência do árabe por meio das populações muçulmanas que habitavam o sul da Península Ibérica, gradativamente expulsas pelos cristãos.
Os primeiros apontamentos oficiais em português remontam ao século XII. Nessa época, os documentos tendiam a ser escritos no latim culto dos padres, e não na língua das pessoas comuns. No entanto, em 1279, o rei D. Diniz, também poeta, proclamou justamente a língua das pessoas comuns como a oficial.
Em 1290 foi criada a Universidade de Lisboa (em 1308 transferida para Coimbra) com a missão de organizar, defender e difundir o idioma do reino de Portugal, sempre temeroso e vigilante quanto ao poder dos vizinhos castelhanos. A primeira gramática em português surgiu em 1536, assinada por Fernão de Oliveira, e a segunda, em 1540, por João de Barros.
Como se vê pelas datas, quando Pedro Álvares Cabral aportou em terras brasileiras o português era muito jovem, experimentando sua própria formação num país com uma população que mal chegava ao milhão de habitantes, concentrados numa pequena faixa de terra litorânea. Parece inacreditável que esse povo tenha sido capaz, nos séculos XV e XVI, de exportar sua língua singrando os mares, circundando a África e chegando às Índias e ao Japão antes de todos os outros europeus.
Foi com a colonização da imensa costa atlântica do Brasil que o português deitou raízes em solo americano, alcançando uma vastidão impressionante. Nem o mais otimista dos lusitanos do século XVI sonharia que metade da América do Sul viesse a falar a sua língua, concentrando no lado de baixo do equador a imensa maioria de seus falantes.
Múltipla e mestiça
A partir de 1500, Portugal remeteu ao Brasil tudo o que ele mesmo era. Transplantou-se ao Novo Mundo. Transfigurou-se nos trópicos. A língua portuguesa que chegou ao Brasil era tão múltipla e plural quanto as próprias pessoas que a falavam.
O falar dos primeiros colonizadores de Olinda ou São Vicente era bem diferente do de D. João VI e dos lisboetas que aportaram com a Corte no Rio de Janeiro em 1808. Que, por sua vez, era distinto do linguajar do milhão e meio de imigrantes portugueses – pobres e iletrados em sua maioria – que chegaram aos portos brasileiros entre 1880 e 1920, vindos do Algarve, Trás-os-Montes, Minho e Ilha da Madeira, praticando formas singulares de comunicação oral.
Durante todo o violento processo colonizatório a língua portuguesa teve de enfrentar outras: a espanhola no sul, a holandesa em Pernambuco, a francesa no Rio de Janeiro e no Maranhão. E por todo o território brasileiro travou ainda renhida guerra contra o tupi-guarani, além de outras 350 falas ameríndias.
Em torno do ano de 1700, em São Paulo, a maioria das pessoas falava a língua geral, ou seja, um tupi-guarani, já mesclado com português, codificado pelos padres jesuítas para catequizar os índios. Essa língua deixou sua marca no vocabulário e no modo como certas palavras são pronunciadas (ver reportagem sobre a língua geral na edição 64). O português, assim, tornou-se ainda mais mestiço – um pouco índio, um pouco caboclo.
Em 1757 o rei de Portugal D. José I, sob inspiração do Marques de Pombal, proibiu a língua geral em benefício do idioma da metrópole. A rigor, como observou o linguista e dicionarista Antonio Houaiss, o português do Brasil só se fez forte nos séculos XVIII e XIX, quando, do ponto de vista do idioma, houve renovadas vitórias do colonizador sobre o colonizado.
O português prevaleceu. O brasileiro lê Fernando Pessoa ou José Saramago sem dicionário e com a mesma intimidade emocional com que se deleita com as páginas escritas por Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Mas a existência da língua é um documento histórico, que traz dentro de si o registro de venturas e desventuras do passado.
O português venceu, sim, mas a história o tributou: no Brasil, deixou-se atravessar por palavras indígenas, como jururu e cuia; africanas, como bunda e cafuné; francesas, como paletó e matinê; inglesas, como trem e futebol; italianas, como soneto e carnaval; espanholas, como bolero e chimarrão; alemãs, como blitz e cuca; japonesas, como quimono e tatame.
A língua acolheu ainda muitas outras influências, que expressam as muitas humanidades que nos constituíram. Abrasileirou-se não apenas no vocabulário, mas no modo de dizer, na sintaxe e na musicalidade. O português, disse Antonio Candido, “transladado ao Sul da América, não perdeu o caráter grave, nem a têmpora máscula, nem o tom de funda melancolia que lhe imprimiu a esforçada e trágica aventura de nossos avós; e ainda adquiriu preciosos elementos de encantadora suavidade, de frouxa, dolente e maviosa ternura”.
Cronologia
1279
O rei D. Dinis decreta que a chamada "língua vulgar", um latim modificado, passe a ser a língua oficial de Portugal.
1290
É criada a Universidade de Lisboa
1308
A universidade de Lisboa é transferida para Coimbra
1500
Descoberta do Brasil. Ao longo do século XVI, colonização portuguesa em várias partes da África
1536
Publicação em Lisboa da primeira gramática da língua portuguesa, de Fernão de Oliveira
1540
Publicação da segunda gramática, de João de Barros
1572
Publicação de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões
1712-1721
Publicação, em oito volumes, do primeiro dicionário português-latim, o #Vocabulario portuguez e latino#, do religioso francês radicado em Portugal Rafael Bluteau
1750
Criação da Real Academia das Ciências de Lisboa
1757
O marquês de Pombal institui a Lei do Diretório dos Índios, que proíbe no Brasil o uso da língua geral, na Amazônia chamada de nheengatu (que misturava o português às línguas indígenas)
1789
Primeira edição em Portugal do #Dicionário da língua portuguesa#, de Antonio de Morais Silva, reeditado em 1813, 1831, 1844, 1858, 1877 e 1889
1844
Publicação do primeiro romance brasileiro, #A moreninha#, de Joaquim Manuel de Macedo
1883
Primeira descrição do sistema fonético do português de Portugal, feito pelo filólogo Aniceto dos Reis Gonçalves Viana
1904
 Gonçalves Viana publica em Lisboa #Ortografia nacional#, obra que simplifica o português
1911 Primeira reforma ortográfica em Portugal
1931 Primeiro Acordo Ortográfico Brasil-Portugal
1939
Publicado o #Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa#, primeiro grande dicionário brasileiro, organizado por Laudelino Freire, membro da Academia Brasileira de Letras
1996
Criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, a partir de 2002, Timor-Leste)
2008
Adesão do Brasil a uma nova reforma ortográfica para países de língua portuguesa

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Modernidade e herança colonial

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Novembro 2011

Já faz alguns anos o Brasil e a América Latina estão em alta. Há razões pra isso. Os Estados Unidos e a Europa vivem a pior crise do pós-guerra, ao passo que a América Ibérica vive um dos melhores momentos de sua história. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, nunca uma série de crises foi tão pungente e tão global: os Estados Unidos convivem com baixa atividade econômica, altíssimo desemprego, queda de renda e aprofundamento da desigualdade social.
Obra cujo protagonista inicial foi Ronald Reagan, e o final, George Bush, o filho. Barack Obama mal consegue reagir, paralisado entre a decepção de uns e a fúria de outros. As ruas estão tomadas, à esquerda pelo Occupy Wall Street, e à direita pelo Tea Party. A Europa também vive sua pior crise, ao mesmo tempo econômica, social e política. O generoso projeto da União Europeia corre o risco de desabar. O que preocupa se olharmos para a história do Velho Mundo, que experimentou espetáculos deprimentes: guerras dinásticas intermináveis; católicos e protestantes matando-se mutuamente; a Inquisição queimando judeus, mouros, "bruxas"; revoluções e contra-revoluções. O nazi-fascismo coroou essa história de horror. O Japão, que nos anos 70 parecia ter reinventado o capitalismo, vive uma longa estagnação, radical envelhecimento populacional e imobilismo político.
Enquanto isso, o Brasil e a América Latina colhem elogios à direita e à esquerda. No seminário "Crisis y revoluciones posibles", realizado recentemente, o ativista de esquerda italiano Toni Negri diz o seguinte: "(...) vocês [da América Latina] devem entender que isso que estamos fazendo [na Europa] tem correspondências com o que já se vem fazendo nos vinte anos passados na América Latina, que não resolveu todos os problemas, sim. Mas não há dúvidas de que o que hoje se vê pelo mundo tem correspondências com a experiência argentina, boliviana e a grande experiência brasileira, de transformação do movimento operário de Lula, e com grande força de governo, são, todas, grandíssimas experiências de novas gestões do comum e de transformação radical das constituições, sobretudo evidentemente das constituições coloniais." [http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/10/seminario-crisis-y-revoluciones.html].
À direita do espectro político também há um vigoroso reconhecimento de que o Brasil já não é mais aquele, como atestam as palavras de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano: "O Brasil é um país com potencial de crescimento assombroso, que não lembra de modo nenhum o país que há pouco mais de uma década enfrentava sérias dificuldades financeiras". Summers afirmou ao jornal Valor Econômico "que, em 1999, quando negociava com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seus 'bons amigos' Pedro Malan (então ministro da Fazenda) e Armínio Fraga (então presidente do Banco Central) para ajudar o Brasil a sair de uma crise, seria inimaginável pensar que, 12 anos depois, o Brasil 'conseguiria acessar o mercado internacional em condições melhores não apenas que Grécia, Portugal, Espanha e Bélgica, mas também França'". (Valor, 27/10/2011).
O outro lado da moeda
Muito bem! Só não podemos esquecer que as heranças coloniais de nossa formação histórica estão vivas, mais do que gostaríamos. Uma pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), intitulada "Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil", publicada pelo jornal O Globo, realiza uma radiografia das vítimas de trabalho escravo e também dos "senhores" que os praticam. A pesquisa mostra que os fazendeiros acusados de explorar os trabalhadores nasceram, em sua franca maioria, "no Sudeste, mas moram nas regiões próximas às lavouras (Norte, Nordeste e Centro-Oeste)". Mostra também que "eles têm curso superior e declararam como profissões pecuarista, agricultor, veterinário, comerciante, gerente, consultor e parlamentar". Em sua maioria, diz a pesquisa, "são filiados ao PMDB, PSDB e PR" (Globo.com 25/10/2011).
Os trabalhadores submetidos a condições análogas às da escravidão são de "baixíssima escolaridade (analfabetos e com menos de quatro anos de estudo), nunca fizeram um curso de qualificação. No entanto, 81,2% deles declararam que gostariam de fazer algum curso, principalmente os mais jovens: 95,2% dos que têm menos de 30 anos disseram ter preferência nas áreas de mecânica de automóveis, operação de máquinas, construção civil (pedreiro, encanador, pintor) e computação". Esses trabalhadores são originários do "Maranhão, Paraíba e Piauí", mas foram resgatados principalmente em Goiás, Pará, Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Bahia, regiões onde o agronegócio é dinâmico.
Segundo a pesquisa da OIT, "a agropecuária continua sendo o setor de maior concentração de trabalho escravo, sobretudo nas fazendas de cana-de-açúcar e produção de álcool, como é o caso do Pará; plantações de arroz (Mato Grosso); culturas de café, algodão e soja (Bahia); lavoura de tomate e cana (Tocantins e Maranhão)" (Globo.com 25/10/2011).
No dia 27 de outubro, no twitter, houve milhões de mensagens contra os nordestinos, por causa de problemas no Enem, ocasionados por uma escola de Fortaleza. Os twits propunham até morte aos nordestinos. A maioria das mensagens partiu do Sudeste e do Sul, especialmente de São Paulo. Em 2009, porém, os problemas do Enem foram em São Paulo. Não houve "twitaço" contra o estado. Nem houve gente propondo morte aos paulistas. O episódio suscita outra lembrança: uma jovem paulista, Maiara Patruso, propôs "morte aos nordestinos" – também no twitter, com milhares de seguidores – na noite em que o país conheceu o resultado das eleições presidenciais. A jovem paulista, descontente com o resultado da eleição, também havia proposto morte aos nordestinos.
No mesmo dia 27 de outubro veio a público a notícia de que adolescentes brancas de Curitiba agrediram uma jovem negra. A menina de 16 anos foi agredida física e moralmente pelas colegas basicamente por ser negra. Nem pessimismo paralisante, nem euforia tola, mas a consciência de que falta muito para civilizar o país, inclusive os seus setores pretensamente modernos.

Brasil, cresce!

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Outubro 2011

Sob certos aspectos, o Brasil evoluiu de forma notável, desde a Constituição de 1988, quando a democracia deitou raízes no solo cultural, político, econômico e social brasileiro. Mas sob outros, continuamos uma sociedade primitiva e rudimentar. O leitor que acompanha as colunas desse espaço sabe que o articulista não compartilha do "complexo vira-lata" (Nelson Rodrigues), segundo o qual o Brasil e os brasileiros são sempre o que há de pior no mundo. Sabem também que a coluna não compartilha de outra chaga psico-social: o "mal de Nabuco" (Mário de Andrade), preceito segundo o qual a Europa e sua civilização são sempre deslumbrantes. Nem uma coisa, nem outra. Mas, não se pode negar, que em certos aspectos o Brasil dói.
Imposto
Os estratos mais ricos da sociedade brasileira raivosamente discursam contra os impostos (O Tea Party, nos Estados Unidos, também). Dizem eles: "nós", a sociedade, precisa se proteger do Estado. Ok! Mas – os mesmo setores, as mesmas pessoas – não sentem a mesma raiva da "escola pública", onde os seus filhos não estudam. Essa gente bacana, branca e bem nutrida não sente a mesma raiva do hospital público. Até reclamam da saúde e da educação, assim como reclamam do calor. "Nossa! esquentou hein!!" Raiva mesmo é dos impostos. Porém, vejamos.
Nossa carga tributária está por volta de 35% do PIB – o que é relativamente alta, mais alta que países similares, como México ou Argentina, e similar ao Reino Unido. Mas, dirão os brasileiros, "os serviços são ruins". Sim, são ruins. Mas os impostos britânicos incidem sobre uma renda per capita três vezes maior que a brasileira. Isso significa que, mesmo tendo uma carga tributária similar, em termos reais (per capita), o valor arrecadado, no Brasil, é evidentemente menor. Do mesmo modo que uma carga tributário dos mesmos 35%, na Etiópia, será ainda menor.
Em média, os países mais desenvolvidos gastam 6,5% do PIB em saúde. Nós gastamos 3,6%. Há, sim, má gestão e corrupção. O que, obviamente, faz mal ao país. Mas achar que resolvendo os problemas de gestão e corrupção, os problemas da saúde estarão "naturalmente" resolvidos é, simplesmente, burrice (ou canalhice).
A derrota da CPMF no Congresso fez mal ao país. O chamado imposto do cheque pega todo mundo, inclusive o mercado financeiro, os rentistas, os especuladores, enfim, a pátria financeira. Não estou a dizer que o país não poderia baixar impostos, mas não esse. Dever-se-ia ter cortado impostos que incidem sobre o consumo popular e sobre a indústria, que gera empregos. A derrota da CPMF foi uma vitória dos bancos, dos grandes investidores, do mercado financeiro.
O sistema tributário brasileiro é ruim, tão ruim, que os pobres pagam mais impostos que os ricos, por uma razão simples: boa parte da carga tributária incide sobre produtos de consumo. Os pobres gastam quase tudo que ganham (pois ganham pouco), já os mais ricos investem uma parte dos seus ganhos em propriedades ou investimentos financeiros, cujos impostos são baixíssimos.
O país precisa de mais impostos sobre as grandes rendas e a propriedade e menos impostos no consumo de produtos básicos. Outra coisa: é preciso diminuir os impostos sobre empresas que produzem riqueza e geram muitos empregos, como a indústria. E aumentar os impostos sobre o agro-negócio, que geram muita riqueza, mas relativamente poucos empregos. Isso é mais importante do que a CPMF. Mas isso ninguém fala, não ecoa na imprensa, não dá na Veja!
O Paraguai tem a menor carga tributária da América do Sul. O estado é raquítico. A educação e a saúde são paupérrimas. Não há pesquisa em tecnologia. Não tem investimentos de monta em universidades. Não há infraestrutura, etc. A Suécia e a Noruega têm, ao contrário, as maiores cargas tributárias do mundo e, claro, os melhores serviços públicos. A saúde e a educação são inteiramente públicas. Só cortar impostos é assumir o Paraguai como projeto. É, portanto, necessário elevar o nível do debate político sobre o sistema tributário, terreno onde grassa a ignorância e a má-fé.
Verdade
Está para ser votado no Congresso Nacional o projeto para a constituição de uma Comissão da Verdade. O que poderia ser motivo de contentamento, para quem está preocupado com legado da ditadura militar e com os crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado à época, é, no entanto, motivo de constrangimento. Países como Argentina, Uruguai e Chile acertaram contas com a ditadura. Ninguém está propondo revanche, nem vingança, mas o país tem direito a conhecer a sua história. As próximas gerações precisam saber que o Estado torturou e assassinou, de modo ilegal e clandestino. Não interessa se culpados ou inocentes. O fato é que o Estado não pode torturar e matar nos subterrâneos, nem ladrão de galinha, nem guerrilheiro. Muito menos torturar e matar por crime de opinião. Pode julgar e condenar na forma da lei, oferecendo direito a defesa, segundo padrões de civilidade consagrados pela valores civilizatórios alcançados. O país também precisa saber que empresas privadas participaram do empreendimento. Ajudaram a ditadura e financiaram os crimes do Estado. A verdade histórica basta!

O tamanho do Brasil: a formação histórica do território

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Setembro 2011


Em setembro temos a "semana da pátria", como nos ensinaram os livros didáticos. Mário de Andrade já disse que "pátria é o acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der". As nações são criações históricas e culturais e nunca uma essência "natural", nem mesmo uma essência cultural. Ao contrário, são criações humanas complexas, tributária de uma trama política e histórica construída e reconstruída através dos tempos. Os próprios mapas são móveis e as fronteiras (ou a ausência delas) mudam ao longo do tempo. O certo, porém, é que a nações existem e existem sobre um lugar. E nesse lugar tem história.
Todos já ouviram frases como: "a descoberta do Brasil", "o Brasil, quando os portugueses chegaram...", "quando os holandeses invadiram o Brasil...", etc. Textos como esses derivam de equívocos, oriundos da ausência de uma consciência histórica mais apurada, inclusive nos meios escolares e cultivados. São malefícios herdados historiografia tradicional, interessada em explicar a nação, mesmo quando ela ainda não existia.
O Brasil, simplesmente, não existia em 1500, quando a esquadra de Cabral aportou em algum ponto da costa atlântica da América do Sul. Eram aqueles apenas territórios de um continente novo (do ponto de vista europeu). Os habitantes do vasto continente não eram os "verdadeiros" brasileiros, eram, sim, verdadeiros indígenas de diferentes nações, falando línguas e cultivando distintas tradições e, sobretudo, sentindo-se tupis, tupinambás, guaranis, xavantes, ianomâmis, etc.
Não se pode falar em "Brasil-colônia" nem 1630, quando os holandeses ocuparam Pernambuco e áreas adjacentes. Havia a América portuguesa que, do ponto de vista da ocupação européia, não era um continente, mas um arquipélago. Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro ou São Vicente (São Paulo) eram apenas portos, muitas vezes mais conectados a Lisboa do que uns em relação aos outros. Apenas São Paulo de Piratininga contava com um pequeno núcleo de povoamento fixo, habitada por (poucos) brancos, mestiços e índios a viver longe da costa atlântica. Quando os bandeirantes paulistas acharam ouro, no que viria a ser Minas Gerais, entre 1693 e 1695, a partir daí houve um grande impulso rumo aos sertões vastos e profundos da América portuguesa.
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Quando esses territórios, essas gentes e essas culturas viriam formar uma "unidade", cujo o nome seria, para simplificar, "Brasil"? Só com a Independência, em 1822. Antes disso havia uma vaga consciência entre os lusos-americanos, de que algo os diferenciava dos lusitanos de além-mar. É a partir da Independência que o Brasil começou a se inventar como um país unido. Unidade política que aconteceu na América portuguesa, não foi possível à América espanhola, que se fragmentou em dezenas de países. Não devemos esquecer, porém, que a possibilidade do Brasil se fragmentar foi enorme ao longo de toda história.
Mas porque, afinal, o Brasil não se "desmontou"? Não há respostas definitivas para isso. Existem, no entanto, hipóteses. Para o historiador Fernando Novais, o Brasil permaneceu unido porque havia um consenso entre as elites das diferentes partes da América portuguesa em torno da escravidão, o que tornaria a forma monárquica e escravocrata conveniente aos donos do poder, parafraseando Raimundo Faoro. Em quase todo o mundo hispânico, a escravidão terminou com as independências. Entre nós, sobreviveu quase todo o século XIX. A explicação de Novais, portanto, faz sentido, mas não esgota o problema.
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Desde o início da colonização portuguesa cunhou-se a noção de "ilha-Brasil". De acordo com essa imaginação, o território português na América seria definido geograficamente pelos cursos dos rios Paraguai, Uruguai, Guaporé e Mamoré e pelo vale drenado pelos afluentes do rio Amazonas. Em outras palavras, as possessões portuguesas iriam do Amazonas ao Prata, alargando-se ao Oeste. Concebido como um todo geográfico e geometricamente definido e quase insular. Observemos que essa formulação não corresponde nem obedece ao tratado de Tordesilhas. Esta antiga narrativa, baseada em relatos e mapas de viajantes, funcionou como mito da origem (territorial) do Brasil – interpretado, ou imaginado, para falar como Benedict Anderson, como uma unidade natural, que a Independência só consagraria.
A ideia de que o Brasil é uno desde sempre é tão profunda que o próprio Fernando Novais e boa parte da melhor historiografia brasileira do século XX utilizaram a expressão "Brasil-Colônia", como se tivesse havido desde os tempos coloniais uma unidade política nesses vastos territórios. A América portuguesa, no chamado período colonial, dividia-se em "Estado do Maranhão", que compreendia o Ceará, Maranhão e o Grão-Pará" (Amazônia) e o "Estado do Brasil", que ia do Rio Grande (do Norte) até a Colônia de Sacramento (Uruguai), passando por São Pedro do Rio Grande (do Sul). O "Estado do Maranhão" uma dignidade jurídica e administrativa separada do "Estado do Brasil" em 1621-8. O Ceará uniu-se novamente ao "Brasil" em 1656. Os dois "Estados" só foram unificados em 1774, sob a égide das reformas do Marques Pombal. Mesma data em que a capital do "Estado do Brasil" foi transferida de São Salvador da Bahia de Todos os Santos para São Sebastião do Rio de Janeiro. (Estado do Brasil, Estado do Maranhão ou Estado das Índias é como os portugueses da época nomeavam suas colônias).
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Entre 1580 e 1640 as monarquias portuguesa e espanhola foram unificadas sob a égide dos Filipes de Espanha. As Coroas não foram fundidas, mas o rei de Espanha era também rei de Portugal, e de Madri comandava as duas monarquias católicas. Se nesses remotos tempos a ideia de fronteira era algo abstrata, ficaram ainda mais com a união das duas Coroas ibéricas, facilitando a presença de comerciantes portugueses, muitos deles cristãos-novos, em diferentes lugares do mundo hispano-americano, como Veracruz de Ignacio de la Llave (México) ou Real de Nuestra Señora Santa María del Buen Ayre (Argentina). Facilitou também a presença de castelhanos na América portuguesa, especialmente em São Paulo
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A imaginação acerca dos bandeirantes também serviu ao discurso da unidade do Brasil. Autores como Afonso Taunay, Cassiano Ricardo e mesmo o importante historiador português Jaime Cortesão contribuíram para formular a leitura segundo a qual as bandeiras seriam verdadeiras epopeias da construção nacional. Segundo essas narrativas, os bandeirantes paulistas, colonizadores do continente, legitimaram a noção de "ilha-Brasil". Nesse sentido, os bandeirantes seriam obscuros e anônimos trabalhadores da unidade brasileira, antecipando os esforços diplomáticos futuros.
Não podemos negar a potência explicativa da formulação de Novais, nem excluir a influência de antigas construções mitológicas, pois a história é um inventa-mundos, a operar de acordo com circunstâncias, interesses, possibilidades e mesmo acasos. A diplomacia portuguesa, desde a era colonial, e a brasileira, a partir da Independência – o Barão do Rio Branco que o diga – trabalharam tenazmente para tornar a noção de "ilha-Brasil" em razão (histórico-geográfica) de Estado, mobilizada em tornar possível uma unidade política que estaria impressa numa mitológica "realidade geográfica", anterior à colonização, anterior mesmo à própria história. 
O consenso escravocrata de que falava Novais certamente deitou raízes (profundas e terríveis) em nossa formação histórica, mas a força (política) de mitos e o empenhado em vir a ser, concorreu, em algum grau, para a montagem do Brasil. A história não é a cinza morta do passado, mas o fogo vivo que cozinhou o tempo e nos fez como somos. Seríamos outros, se a história fosse outra. E os tempo futuro há de ser o que os homens fizerem dele, a partir dos limites, das possibilidades, dos interesses e das circunstâncias.

O Fundamentalismo ocidental


Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real.Agosto 2011
O terrorismo – diferente do que a imaginação conservadora do Ocidente sugere – não é apanágio do islamismo, mas do fundamentalismo, seja islâmico, judeu, cristão, ou ainda fascista ou stalinista. Nasce da incapacidade de conviver com a diferença e é animado pela vontade de universalizar, à força, o singular, ou o pretensamente singular. O nazismo foi, na trágica experiência histórica do século XX, o triunfo dessa vontade de poder, cujo signo de morte é conhecido.
O ataque perpetrado por Anders Behring Breivik, que resultou na morte de 76 pessoas, em sua maioria jovens e simpatizantes do Partido Trabalhista, em geral favoráveis ao multiculturalismo e às leis migratórias mais inclusivas, não se originou, pura e simplesmente, de uma mente pervertida. Não que Anders Behring Breivik não o seja, mas a perversão é mais complexa. Em entrevista ao jornal espanhol El País (25/07/2011), o taxista Arild Tangen, eleitor do Partido do Progresso, de extrema direita, detentor de 23% dos votos na eleição de 2009, proferiu a seguinte e esclarecedora frase: "Se odiava tanto os muçulmanos, que matasse jovens muçulmanos ou negros". Tangen, que considera Breivik um "bastardo", parece não discordar do método, mas sim do alvo. Breivik preferiu atacar brancos noruegueses simpáticos ou tolerantes aos muçulmanos e negros.
Anders Behring Breivik filiou-se por volta do ano 2000 a um partido conservador, mas rapidamente se desiludiu, pois – segundo descreveu em seu manifesto, "2083 - Uma Declaração Europeia de Independência" – chegou à conclusão que a suposta islamização da Europa e o multiculturalismo europeu não seriam detidos por meios democráticos. O ataque terrorista da Noruega é a ponta mais visível da ascensão dos movimentos xenófobos, de viés autoritário, racista e hostil à imigração, movimentos cada vez mais fortes na Europa.
Mas também nos Estados Unidos, onde, recentemente, uma deputada democrata, contrária as leis anti-migratórias mais duras, foi ferida a tiros por um militante de ultra-direita, para quem Barack Obama é "negro", "muçulmano" e "socialista". Não se trata de discorrer sobre a confusão conceitual em torno da associação desses três vocábulos, tornados adjetivos, mas observar o fato de que - nas sensibilidades do radicalismo conservador – aparecem juntos.
O ataque do fundamentalismo cristão-ocidental na Noruega (bem como as bandeiras políticas ultra-conservadoras do Tea Party nos Estados Unidos), além do ódio aos imigrantes e ao mundo islâmico, têm em comum um profundo ódio ao Estado, visto como uma instância de proteção aos fracos, aos preguiçosos, aos pobres, aos negros, aos imigrantes. Não parece ter sido coincidência que Anders Breivik tenha atacado o quarteirão do governo em Oslo e um agrupamento da Juventude Trabalhista (partido no poder desde 2005).
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Anders Behring Breivik assumiu plenamente sua simpatia pelo nazismo. O que nos remete aos esforços intelectuais para compreender o nazifascimo. Neste momento quando muitos tentarão explicar o ataque através da loucura de Anders Breivik, convém retomarmos os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, para os quais os fascismos e sua lógica de segregação não podem ser explicados pela ação de monstros patológicos, perversos e loucos, mas como uma forma de vida, alimentada por uma ética e uma estética bem definidas e disseminadas, cujo fulcro não está nos delírios paranoicos de certos indivíduos (delírios que de fato existem, mas não se explicam fora do contexto social, político e cultural), mas no discursos e nas sensibilidades políticas tacitamente aceitos por determinados grupos.
Dito de outra forma: sim, o autor era "louco", como eram loucos os terroristas de 11 de setembro, mas essa loucura tem uma causa mais política do que clínica.
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O extremista norueguês – islamófobo, cristão conservador e simpatizante de partidos de extrema-direita – cita o americano Ted Kaczynski, o Unabomber, que matou três pessoas e feriu 23 entre as décadas de 70 e 90. O Manifesto de Unabomber se opunha à "sociedade industrial" e ao "esquerdismo moderno". No texto de Breivik, desaparece o termo "esquerdismo", substituído pelo de "multiculturalismo" ou "marxismo cultural". No manifesto de 1500 páginas, intitulado "2083 - Uma Declaração Europeia de Independência" (provável alusão à batalha de Viena, em 1683, que colocou fim ao avanço otomano sobre a Europa), Anders Breivik não esqueceu o Brasil. Nele, afirmou que uma "revolução marxista" instituiu no Brasil uma sociedade que mistura descendentes de asiáticos, europeus e africanos.
A miscigenação, diz, levou "altos níveis de corrupção, falta de produtividade e em um conflito eterno entre várias culturas competitivas". A existência de mulatos e de mestiços teria formado "sub-tribos" e, continua, "é evidente que um modelo semelhante na Europa seria devastador". A miscigenação de raças na Europa significaria o genocídio dos nórdicos, conclui o aturdido norueguês.
São explicações, naturalmente, estapafúrdias, ou mesmo engraçadas, como a tese segundo a qual a "revolução marxista" (sic) teria misturado raças, mistura que no Brasil começou uns 400 anos antes do velho Karl Marx ter nascido. Mas as teses de Breivik servem para mostrar o quanto um país mestiço como o Brasil – e agora razoavelmente próspero – incomoda o radicalismo conservador do Atlântico Norte. E isso não é nem um pouco engraçado, sobretudo quando lembramos que ecos deste conservadorismo também pulsam no seio da sociedade brasileira. Lembremos dos ataques aos gays na Paulista, ou do pai e filho que foram agredidos por serem confundidos com "gayzinhos" no interior de São Paulo; lembremos ainda dos delírios separatistas de paulistas e sulistas, indignados com a opção política dos nordestinos nas últimas eleições presidenciais. Uma moça de São Paulo postou no Twitter: "Nordestino não é gente, façam um favor a SP, mate um nordestino afogado!". Milhares de pessoas, pública ou silenciosamente, concordaram com o teor da frase.
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Em termos civilizatórios, como sugerem Adorno e Horkheimer, o problema não está nos delírios individuais, mas sim nos delírios coletivos.