sexta-feira, 29 de junho de 2012

Paraguai


Entre os dias 21 e 22 de junho o Senado do Paraguai propôs, julgou e condenou o presidente Fernando Lugo por "mau desempenho das funções", num ritmo jurídico de pouco mais de 30 horas. A menos de dez meses do fim do mandato, Lugo  teve 90 minutos para se defender.  Encenação digna dos tempos de Alfredo Stroessner.
Trata-se de um clássico golpe constitucional, perpetrado pelo parlamento – dominado pela velha oligarquia paraguaia – que aproveitou a fragilidade política do presidente, acusando- de "negligência e inaptidão" no enfrentamento entre camponeses e policiais em Curuguaty, no último dia 15, quando morreram 17 pessoas.  O placar foi de 39 votos a 4, o que demonstra que o governo perdera inteiramente a sua base de apoio parlamentar. O deputado Salym Buzarouis, do Partido Liberal Radical Autêntico, até pouco tempo atrás aliado de Lugo, negou ter havido uma ruptura da ordem democrática: “Aqui não há nenhum golpe, foi tudo 100% constitucional. Se um julgamento político [impeachment] é golpe de Estado, então os parlamentares [do Brasil] em 1992 já fizeram golpe de Estado”, disse, referindo-se ao impedimento do então presidente Fernando Collor.
A questão legal
A constituição do Paraguai de fato prevê o instrumento de interrupção do mandato, desde que haja apoio de 2/3 do Congresso.  Certos analistas brasileiros – que acusam Lugo de “populista e errático”, segundo a definição de um grande jornal de São Paulo – se apressam em justificar o golpe, argumentando a legalidade da ação. Do ponto de vista do edifício democrático ocidental – uma construção de mais de 200 anos, que remonta ao “espírito das leis”, de Montesquieu – não é possível operar um julgamento político dessa natureza, senão num prazo que se mede em meses, onde não só o presidente, mas também (e sobretudo) a sociedade possa se pronunciar. Qualquer mandatário detentor de votos, em julgamento político, não pode ser condenado em rito sumário, não em respeito à pessoa do presidente, mas ao voto popular, fonte última da legitimidade políticas nas democracias modernas. Alegar a legalidade do impeachment relâmpago é um expediente retórico para justificar um processo sumário. A lei, muitas vezes, é ilegítima. Pensemos em desembargadores brasileiros, cujos salários correspondem a 3 ou 4 vezes o salário do presidente da República ou dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Esses salários incorporam benefícios legalmente conquistados, mas certamente ilegítimos. Exemplos mais radicais também caberiam: a escravidão, até maio de 1888, era legal, afrontando os mais elementares princípios civilizatórios da época, um século depois da Revolução Francesa. Trata-se apenas de exemplos para dizer que a letra da lei eventualmente fere o “espírito da lei”. O fuzilamento político do presidente Lugo pode ter amparo constitucional, o que não é suficiente para torná-lo legítimo.

A questão política
Fernando Lugo caiu não apenas pela baixa cultura democrática da sociedade e das instituições do Paraguai, pelo caráter oligárquico do parlamento daquele país, pela fragilidade da opinião pública e dos movimentos sociais. Também contribui para sua derrocada a perda de apoio popular e a crise econômica. Em 2010, a economia, animada pelo boom do agronegócio, crescia a 15% ao ano, enquanto que em 2012, projeta-se uma retração de 1,5%. Lugo cometeu erros, como a tentativa de trazer ao governo os “colorados”. Movimento que levou ao afastamento dos liberais, que o apoiavam desde a eleição. Problemas pessoais – como a paternidade de filhos gerados quando ainda era bispo – certamente contribuíram para fragilizá-lo politicamente. Fragilidades que não autorizam o açodamento da oligarquia paraguaia, que levou a cabo um golpe constitucional, sob a benção da classe política, dos sojicultores brasiguaios, da Suprema Corte e da Igreja Católica.
Em outras palavras, Lugo caiu, também, pela correlação de forças. A democracia e a construção de sociedades mais avançadas – socialmente mais justas, institucionalmente mais elaboradas, economicamente mais dinâmicas – não se dá apenas na esfera do Estado, mas da sociedade. Dito ainda de outro modo: as diferentes vertentes progressistas precisam ganhar musculatura política para enfrentar a velha tradição “colorada” – partido que permaneceu no poder sem interrupções desde 1947 até a vitória de Lugo, em 2008. Grande parte desse longo tempo sob odiosa ditadura militar.
O “golpe legal” não se deu apesar do país estar a poucos meses da eleição, mas justamente em função dela. Dominar o aparelho estatal, no Paraguai, é fundamental para “fazer” o presidente.
É curioso observar que as forças políticas tradicionais, que perpetraram o golpe, evocam a memória da tríplice aliança, composta por Brasil, Uruguai e Argentina, na Guerra do Paraguai (1865-1870), para se defenderem das críticas que partem desses países, no âmbito do Mercosul. Manipulação histórica das mais elementares, digna da tradição colorada – um dos agrupamentos mais atrasados e obscurantistas da América Latina, que apoiaram a canhestra ditadura de Alfredo Stroessner.
Brasil
A política externa brasileira deve condenar politicamente a ilegitimidade do governo de Federico Franco, o vice-presidente eleito na chapa de Fernando Lugo – e agora o presidente da República. O Itamaraty – no âmbito da Unasul e do Mercosul, mais do que da Organização dos Estados Americanos (OEA) – deve defender a convocação de eleições gerais. Mas não deve – como não vai – apelar para o bloqueio econômico ou territorial do Paraguai, um país insular, que poderia ser facilmente asfixiado economicamente. Essa opção lembraria a arrogância norte-americana e consolidaria uma imagem imperial do Brasil. No entanto, todos os acordos de cooperação devem ser suspensos, o embaixador brasileiro, ora recolhido, não deve voltar a Assunção; Brasília não deve promover, nem receber visitas oficiais em qualquer escalão; o Paraguai não deve participar fóruns políticos na região, até que o país constitua um governo legítimo.

domingo, 27 de maio de 2012

Brasil: nome da terra de Santa Cruz

Em 1500 – quando Pedro Álvares Cabral aportou em terras do Novo Mundo – não havia o Brasil, nem os brasileiros, senão um continente imenso, habitado por povos de múltiplas nações ameríndias. Ninguém sabia onde principiava nem onde terminava a jurisdição lusitana sobre estes territórios. O tratado de Tordesilhas (1494), delimitando as terras de Espanha das de Portugal, era relativamente abstrato. Mapas portugueses do século XVI estendiam a linha até Buenos Aires. O que os espanhóis, evidentemente, não aceitavam. Durante três décadas daquele século, os portugueses, empenhados no comércio com o Oriente, foram tomando consciência da larguíssima costa. Nos primeiros 20 anos foram fundadas apenas duas feitorias: Cabo Frio (1504) e Pernambuco (1516), habitadas em geral por poucos degredados e desertores. Ambas as feitorias eram de cunho privado e inteiramente desimportantes para a Coroa. A presença de franceses na costa, dedicados ao comércio de pau-brasil, precipitou a decisão portuguesa de povoar as terras. Os portugueses, que se fiavam na doutrina do Mare Clausum (baseados em bulas papais e nos tratados internacionais), sentiam-se ameaçados pelos interesses franceses e de outros europeus, fundamentados na doutrina do jure gentium, ou direito das gentes, segundo a qual um território pertenceria a quem de fato o ocupasse. Apenas em 1530 – não tanto por razões imediatamente econômicas, mas pelo interesse em garantir a posse – foram surgindo pequenos núcleos coloniais, como Olinda e São Vicente, distantes e desconectados uns dos outros, e assim permaneceriam por muito tempo.
Como, afinal, denominar esse conjunto de “ilhas” da costa Atlântica da América do Sul? Naqueles tempos remotos ainda não se chamava Brasil ao lugar que viria a ter esse nome. Nas cartas, Pero Vaz de Caminha denominou-as terras de Vera Cruz. Cabral, com espírito medievalizante, chamá-la-ia de Terra de Santa Cruz, em homenagem ao “lenho sagrado”. Segundo Laura de Mello e Souza, esse nome já aparece em cartas e mapas italianos do princípio do século XVI, assim como outros nomes, como Terra dos Papagaios ou America vel Brasilia sive papagalli terra, ou ainda “Terra de Gonsalvo Coigo vocatur Santa Croxe”, em referência a Gonçalo Coelho, capitão das frotas portuguesas que exploraram a costa brasileira entre 1501-1504. 
De acordo com o grande historiador Capistrano de Abreu, o nome Brasil – ou Bracil, Brazille, Bresilge, Bersil, Braxill, Braxili – já existia em diferentes mapas europeus para designar um incerto lugar geográfico, ilhas ou arquipélagos, nos confins do mundo, cuja existência mítica a prática navegante dissiparia. O nome existiu antes do nomeado. O historiador português Jorge Couto afirma que, em 1512, em carta de Afonso de Albuquerque a D. Manuel, o venturoso, surge pela primeira vez o vocábulo Brasil para designar os domínios do rei de Portugal no Novo Mundo, tornando esse uso cada vez mais comum na documentação da época. Em 1530, segundo Antonio Baião, D. João III designa Martim Afonso de Sousa “capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil”
O nome Brasil ainda não se estabilizara. De um lado, o nome do “lenho sagrado”: Santa Cruz. De outro, “o nome de um pau que tinge panos”: pau-brasil, razão de vil comércio. Deus e o Diabo competindo para batizar a terra do sol. O humanista português João de Barros militou em favor do nome santo, pois lhe pareceu mais apropriado para nomear a possessão de um rei católico. Pero de Magalhães Gandavo, outro humanista português que viveu no “Brasil” quinhentista, também lutou pelo nome pio. Em seu livro, chamado Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil, lamenta o triunfo do nome comercial ante o religioso. A luta entre o nome profano e o sagrado foi vencida pelo primeiro. Nos escritos dos jesuítas do século XVI – como José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim – o nome secular já se impusera. Na primeira História do Brasil, escrita por Frei Vicente do Salvador, em 1627, persiste o lamento pela vitória do “pau de tinta”. O sentido religioso do mundo habitava o universo mental dos homens da época, mas os sinais da secularização ainda tímida, patente no próprio nome do Estado do Brasil, se faziam notar. Naqueles tempos, quando a colonização europeia ainda ia deitando raízes no solo americano, o diabo parecia vencer a luta, ou, dito de outro modo, o espírito de cruzada ia cedendo à prática dos mercadores, não apenas de pau-brasil, mas também de escravos, um ativo de alto valor, sem o qual o Brasil açucareiro não poderia existir. O nome vulgar de pau-brasil, madeira vermelha como brasa, acabaria por se impor, mas sofreria ainda, nas crônicas posteriores, alguma competição com o mui nobre e cristão nome de Santa Cruz.
A multiplicidade de nomes remete à própria indefinição em relação ao sentido da colonização portuguesa na América. Nos primeiros 50 anos do século XVI, a Terra de Santa Cruz e a África portuguesa não representavam quase nada ao Império português. A colônia não nasceu previamente destinada a exportar gêneros tropicais e importar mercadorias europeias e escravos africanos, em benefício dos interesses metropolitanos. O antigo sistema colonial, segundo formulou o historiador Fernando Novais, foi se conformando no tempo, adaptando-se aos interesses e às possibilidades da época, sem nunca apagar inteiramente outros sentidos.  No século XVII o “diabo” do açúcar já havia se instalado e a América portuguesa e a costa ocidental da África formavam o mesmo complexo econômico, como nota Luiz Felipe de Alencastro, um fornecendo escravos negros, outro açúcar branco, consumido no mercado europeu. Como sugere Laura de Mello e Souza, o nome Brasil representa um “fato ímpar entre terras coloniais”, pois era a “única a trazer essa relação tensa inscrita no próprio nome, que lembraria para sempre as chamas vermelhas do inferno”. O ethos mercantil e a missão evangelizadora haveriam de conviver por séculos. O Brasil é filho da tensão entre a cruz e a espada. Deus e o Diabo convivem na terra do sol.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Carlinhos Cachoeira, Demóstenes Torres, a CPI e o Brasil

O país foi, mais uma vez, sacudido por um escândalo de corrupção, suborno e contravenção. Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, construiu um império econômico, que começou com o jogo do bicho, passou pelas máquinas caça-níqueis e culminou em nexos com empreiteiras, tradicionais licitantes de obras públicas. O esquema mafioso – que nasceu modesto no interior de Goiás e alastrou-se por vários estados da federação – contava com uma formidável relação empresarial e estreitos vínculos no meio político e mesmo na imprensa. A Polícia Federal – baseada em longa investigação, que envolveu grampos legalmente autorizados – apontou relações nada republicanas entre Cachoeira e os principais políticos de Goiás, entre os quais o governador Marconi Perillo (PSDB) e o senador Demóstenes Torres (ex-DEM). Havia também ligações com deputados como Jovair Arantes (PTB), Rubens Otoni (PT), dentre outros. O Senador Demóstenes Torres, pelas gravações já expostas, mantinha relações criminosas com o bicheiro, o que é espantoso, pois se comportava como o arauto máximo da virtude pública. As fortíssimas suspeitas contra o governador de Goiás, Marconi Perillo, já geraram a demissão de sua chefe de gabinete. O governador do Distrito Federal, Agnelo Queirós (PT) também é suspeito de relações poucos saudáveis com Carlinhos Cachoeira. A revista Veja é acusada de plantar notas de interesse do bicheiro em troca informações sobre o submundo da política.
Como se pode ver, as acusações recaem tanto sobre membros de partidos da oposição como da base do governo. Os peixes grandes são, no entanto, destacados membros da oposição, que passara anos sem falar outra coisa senão de corrupção. Antes que apelemos para visões simplórias, tais como “os políticos são todos ladrões” ou o “Brasil não tem jeito”, etc, cabe notar um aspecto relevante. Escândalos como esses, se acontecessem na ditadura, nem eu, nem você, caro leitor, saberíamos. Sim, a corrupção é imensa, mas a luta contra ela também. Recentemente foi aprovada, sob forte pressão popular, a Lei da Ficha Limpa. Outra coisa: a quadrilha, com suas ramificações pelo poder público, foi desbaratada pela Polícia Federal, que é um órgão de Estado, portanto vinculado ao poder público. Bem ou mal, as instituições estão funcionando.
   Geralmente quem solicita CPIs é a oposição. Trata-se de um instrumento clássico da minoria. As oposições, sejam elas quais forem, se empenham em CPIs não por afã moralizante, mas para paralisar a agenda parlamentar, podendo, no limite, paralisar toda a máquina pública. É jogo político. Dessa vez, no entanto, quem liderou o pedido de investigação parlamentar foi, paradoxalmente, o PT, partido governista que, em tese, deveria se opor à CPI, de modo que ela não embaraçasse o governo. O objetivo do PT é óbvio. O partido quer desmoralizar a oposição. Jogo político, portanto. Está aí, exatamente, a virtude da democracia que, em sociedades abertas, gera partidos que competem pelo poder. Há setores da mídia, como o sub jornalismo da revista Veja, que temem o “revanchismo do PT”. Trata-se de ignorância ou, mais provavelmente, má-fé. O revanchismo faz parte do jogo político. No episódio do chamado “mensalão”, a oposição fez o que pode para desgastar o governo, com Demóstenes Torres à frente. Que ninguém espere que um leão não coma carne. Em 2005, a oposição queria revanche do velho discurso do PT, para quem todos os outros seriam “farinha do mesmo saco”. De “revanche em revanche” os agentes públicos vão se sofisticando, a pressão contra corrupção aumenta. É claro que não basta a competição pelo poder. É preciso imprensa livre e pluralista, bem como construir instituições que combatam o clientelismo, a corrupção e o patrimonialismo. Papel que cabe aos Tribunais de Contas, ao Ministério Público e à Polícia Federal sob o escrutínio da sociedade.
Os partidos não são, moralmente, bons ou maus em si mesmos. Nem poderia ser assim, pois sociedades livres e complexas não são constituídas por uma única moral. Um exemplo simples. Quem acha que o casamento gay e a interrupção de gravidez indesejada são atitudes moralmente justas, querem que os partidos que os representam defendam a construção jurídica desses direitos. Quem é contra, por considerar essas práticas imorais, desejam que os partidos que os representam obstruam a legalidade de tais práticas. É claro que existem consensos. Desviar recursos públicos é inaceitável por qualquer sistema moral, tanto que corruptos não assumem a corrupção, não só para se verem livres da Justiça (o que no Brasil é até fácil), mas para não serem prejudicados eleitoralmente. Para que a demanda anti-corrupção progrida e vire prática política, é preciso mais transparência, mais politização e instituições melhores, o que se consegue no campo da democracia, com competição pelo poder e pluralismo político. Ditaduras de direita ou de esquerda tendem a ser profundamente corruptas. Discursos ingênuos e comodistas (“políticos são todos ladrões”, “Brasil não tem jeito”, “é tudo farinha do mesmo caso”) nada constroem. Ao contrário, naturalizam a corrupção.
A CPI do Cachoeira fará bem ao Brasil se: a) Explicitar o mafioso conluio envolvendo o Estado e a iniciativa privada. (Caro leitor, lembre-se que é impossível a  um político desviar recursos sem a participação de empresários. Carlos Augusto Ramos é empresário. Trata-se de um clássico corruptor, sem o qual não existe corrupção. b) Se a CPI for rápida e não paralisar o governo. O governo precisa cuidar da economia, da educação, da distribuição de renda, das grandes questões de Estado, enfim. Cabe a Justiça proceder às punições, com o devido rito jurídico. Se há uma coisa que o Congresso pode fazer, mais que coléricos discursos para a plateia, é iniciar uma reforma do Judiciário, que o torne mais rápido, mais justo e mais igualitário. c) Essa CPI vai, muito provavelmente, enterrar o discurso moralista da oposição. Isso fará bem ao país e à própria oposição, que se verá na obrigação de pensar o país, fugindo do discurso fácil. O custo oculto da corrupção é o tempo e a energia que o país gasta falando no assunto. Há chance de construirmos um país formidável, mas não o faremos sem pensá-lo de modo sistêmico, rompendo com o discurso monotemático da corrupção. Para isso, claro, ela também deve diminuir.

CURSO DE EXTENSÃO

 
“São Paulo, uma província do Império Português: Bandeirantes e Bandeirantismo

 
O objetivo é estudar o fenômeno dos bandeirantes entre os séculos XVI a XVIII, dentro do contexto histórico dos tempos coloniais, e o bandeirantismo do século XX, que reflete a construção da memória pelas instituições paulistas. Além disso, o curso apresentará uma visão renovada sobre a velha sociedade paulista e suas relações com outras áreas coloniais da América Portuguesa e do Império Português, a partir de uma produção historiográfica mais recente.

PROGRAMAÇÃO
UNIDADE I  Apresentação do curso
História e Histografia.
Memórias e Mitos.
UNIDADE II – A Ibéria e a Expansão Europeia
Grandes Navegações e descoberta da América.  O imaginário Católico.
UNIDADE III – São Paulo dos Primeiros Tempos
Índios, jesuítas e colonos.
Vestígios e ordenamento jurídico quinhentista.
UNIDADE IV – Entre Europa e América
União Ibérica no tempo dos Filipes (1580-1640). Público e privado na colônia.
UNIDADE V – Tempos Coloniais e o século XX
Caminhos e Fronteiras (Sérgio Buarque).
Inventários e Testamentos. (Alcântara Machado).
UNIDADE VI – Para além de Tordesilhas
O Sertão (Capistrano de Abreu).
O bandeirantismo (Afonso Taunay).
UNIDADE VII – Rumo ao Sertão
Raposo Tavares (Jaime Cortesão).
Negros da Terra (John Monteiro).
UNIDADE VIII – Entre a Tradição e Modernidade
Década de 30. Estado Novo e o nacionalismo brasileiro
Década de 50.  IV Centenário.


Data:  de 05 de maio a 23 de junho de 2012
Horário: aos sábados das 8h30 às 12h30
Carga : 32 horas
Local: Casa de Portugal - Avenida Liberdade, nº 602, entre as estações de Metro São Joaquim e Liberdade.
Investimento:
R$ 40,00 (Taxa de inscrição) + R$ 360,00
Formas de pagamento: 
      4 parcelas de R$ 90,00.   Desconto de 10% para estudantes.
Depósito no Bco do Brasil - Agencia 0712-9, conta corrente 37640-x em nome de Maria Candelária Volponi Moraes de Oliveira.
Inscrições: candy.istorial@gmail.com   (11) 91649666

quinta-feira, 29 de março de 2012

Por uma nova agenda brasileira

Ao contrário do que muitos brasileiros pensam, à direita e à esquerda, o Brasil da última década vive o melhor momento de sua história. Jamais vivemos uma conjuntura que conciliasse plenas liberdades democráticas, crescimento econômico sustentável (embora modesto), estabilidade política e diminuição da desigualdade social. Em outros momentos históricos tivemos crescimento (como na ditadura) ou democracia e liberdade (na era JK), ou ampliação dos direitos dos trabalhadores urbanos (com Getúlio) ou estabilidade político-econômica e liberdades civis (com FHC).
Desses fatores, o que é de fato inédito é a uma relativa diminuição da desigualdade social e uma imensa redução da pobreza absoluta. Não se trata de mágica, mas de política. A Constituição de 1988, liderada por Ulisses Guimarães (PMDB); a dura conquista da estabilidade econômica e certa racionalização do Estado, no governo Fernando Henrique (PSDB); e o arcabouço de políticas sociais, no governo Lula (PT), permitiram que chegássemos ao fim da primeira década do século XXI num momento promissor.
Não vivemos no melhor dos mundos, apesar de vivermos o melhor momento de nossa história. A infraestrutura física é precária. A educação pública, fundamental e média, apesar de avanços, patina (embora nossas melhores universidades sejam de excelente nível, são elitistas). A concentração de renda, de poder e de conhecimento permanecem gigantes, embora estejam diminuindo. O racismo e a desigualdade em função da cor e do gênero ainda são constrangedores. A violência urbana continua alta, embora em queda. O passivo ambiental é grande. Vez por outra, ecos do passado mais brutal nos assaltam, como no recente episódio de Pinheirinho. Entretanto, o Brasil tem melhorado em quase todos os setores sobre os quais existem séries históricas de dados disponíveis. O aumento considerável da expectativa de vida é um sinal inequívoco do avanço civilizatório que vivemos.
Observem os leitores que não falei da corrupção. A pior consequência dessa praga é viciar a opinião pública na errônea noção de que bastaria “acabar” com a corrupção que o país estará “feito”. Pensar assim é ingenuidade de gente boa e desinformada, ou canalhice pura e dura dos interessados. Diminuindo drasticamente a corrupção, a educação e a ciência não vão progredir naturalmente; nem a desigualdade, que depende de questões estruturais, vai diminuir sozinha; e assim por diante. Em alguns países muçulmanos o índice de corrupção, no sentido de roubo de recursos públicos, é baixo, nem por isso são desenvolvidos.
Se hoje a corrupção é altíssima, no passado era provavelmente pior, pois havia menos vigilância da imprensa, das oposições, do Ministério Público. Bem ou mal, hoje é cada vez mais perigoso praticar atos ilícitos. Pode acabar em CPI, no Fantástico, nas malhas da Polícia Federal (que nunca foi tão atuante). Na ditadura não havia imprensa livre, nem Ministério Público, nem opinião pública ativa, nem oposição livre, nem Polícia investigando crimes de colarinho branco. (Polícia havia, mas para cuidar dos “comunistas”, utilizando expedientes como a tortura e o assassinato, e não para investigar os contratos entre os militares e as empreiteiras que construíram a Transamazônica, a Itaipu, a ponte Rio-Niterói, etc.). Não é difícil imaginar o tamanho da corrupção num ambiente assim, onde o risco para o corrupto, desde que alinhado aos governos de plantão, era virtualmente nulo.
Foi no Brasil de hoje, e não de ontem, que uma iniciativa popular, como a Lei da Ficha Limpa, chegou à letra da lei, com a devida aprovação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A quem, afinal, interessa “só” falar de corrupção? Interessa a certo populismo midiático, pois falar de corrupção é compreensível a todos. Não é preciso pensar, dominar conceitos, entender números, decodificar estruturas complexas de pensamento. Roubo é roubo! Interessa também aos setores mais conservadores e obscurantistas da sociedade, que querem desmoralizar o Estado, a fim de pagar menos impostos. Quem não precisa de saúde pública, nem de educação pública, nem de transporte público, nem de segurança pública – pois tem dinheiro para comprar esses serviços no mercado – bem pode aspirar a um Estado mínimo, com pouca tributação e, portanto, baixa oferta de serviços públicos, como no Paraguai, que tem uma das mais baixas cargas tributárias do mundo (e, claro, quase não oferece serviços públicos, pois uma coisa depende da outra). O Paraguai foi dominado pela mais longa ditadura militar da América Sul e sua atividade econômica se reduz ao agronegócio. Esse modelo de Estado e sociedade não serve nem à maioria dos paraguaios, nem aos brasileiros. Embora a elite paraguaia se beneficie disso. Para da elite brasileira, mesmo que se identifique com Miami, tem o “Paraguai” como projeto político.
 A corrupção é grave e precisa ser combatida. No passado o PT foi irresponsável ao usar o discurso fácil de que “tudo é farinha do mesmo saco” para ganhar votos. O mesmo vale para certos setores da opinião pública, de partidos e da imprensa, que reduzem irresponsavelmente todo debate político à corrupção. Diferentes tendências da opinião pública devem se voltar para uma agenda mais sofisticada. Não é porque estamos avançando, que não há grandes perigos à nossa volta. É preciso coragem para enfrentá-los. Uma dessas nuvens de sombra que obscurecem esses trópicos é a crescente perda de competitividade da indústria brasileira, penalizada pelo câmbio brutalmente valorizado, pelos juros mais altos do mundo e por um sistema tributário caótico. Não se trata de uma tecnicalidade econômica. O Brasil, com uma população de 195 milhões de habitantes, não pode abrir mão de seu tecido industrial.
É preciso reconstruir um projeto de desenvolvimento – não nos moldes do desenvolvimentismo dos anos cinquenta, sessenta ou setenta – mas construindo uma agenda adequada ao século XXI, capaz de garantir a convivência entre meio ambiente e plataformas de produção modernas, de alta tecnologia, capaz de conjugar competitividade e direitos sociais e ambientais. Uma agenda que preconize investimentos na geração de um insumo básico para a economia e a sociedade moderna e complexa, que é a produção de conhecimento, daí a centralidade da educação. Não haverá respostas unívocas para essas questões. Liberais, ambientalistas, social-democratas, socialistas produzirão respostas diferentes. Faz parte de uma sociedade aberta e plural que assim o seja. O que universidades, imprensa, sindicatos, partidos, ONGs devem fazer é produzir pensamento e massa crítica, a fim de gerar agendas de atuação política e criar consensos mínimos. E devem ter coragem para enfrentar os setores mais reacionários, atrasados e obtusos do país, no Congresso Nacional e na sociedade civil.
As forças que impedem o Brasil de dar um salto civilizatório de proporções colossais estão em três fundamentalismos verdadeiramente deletérios: a) O fundamentalismo de mercado, que patrocina política e tecnicamente um “liberalismo” primário, contrário aos interesses nacionais (juro alto, câmbio valorizado, liberdade irrestrita do capital especulativo). b) O fundamentalismo ruralista, que não só se opõe aos pequemos avanços do código florestal, como quer recuar ainda mais em relação às normas existentes. (Lembremos que não existem pessoas em situação análoga à escravidão no meio urbano, mas nos grotões do Brasil sim. Não existem sindicalistas assassinados no meio urbano, mas nos fundões do Brasil dos ruralistas sim). c) Por fim, o fundamentalismo evangélico, que arranca dinheiro e votos, em geral dos mais pobres e dos mais vulneráveis, explorando a boa fé e o desespero das pessoas. Esses talebãs do cristianismo – evangélicos, mas também católicos – sustentam uma visão retrógrada do mundo, especialmente em temas sensíveis, como os direitos reprodutivos e a diversidade sexual. São, muitas vezes, racistas, ao agredirem os credos afro-brasileiros. Ofendem, com lógica inquisitorial, pessoas e grupos pacíficos e tolerantes, mas que sustentam uma visão laica do mundo. Não se trata de exclusividade brasileira. Nos Estados Unidos, os extremistas do Tea Party, ligados ao fundamentalismo evangélico, acusam Obama de “muçulmano e socialista” e as feministas de "assassinas". Acusações que nada dizem dos acusados, mas são  todo um compêndio sobre os acusadores. Nem todos os religiosos  pastores, padres ou leigos  partilham dessa perspectiva, nem cá, nem lá, felizmente.
Devemos compreender que um mercado financeiro eficiente e moderno é fundamental para o bom funcionamento da economia. Que a moderna agricultura pode ser um fator de geração de renda e desenvolvimento ao operar dentro de marcos regulatórios social e ambientalmente legítimos. Que a liberdade e a divesidade religiosa são direitos inalienáveis de uma sociedade aberta e pluralista. Mas a intolerância fundamentalista e obscurantista de uns e outros não pode e não deve  avassalar o país inteiro, em nome da imposição de dogmas particulares e de interesses circunscritos. É preciso, no presente, disputar o futuro.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Os 90 anos do modernismo brasileiro

            Há 90 anos, no Teatro Municipal de São Paulo, nascia o modernismo brasileiro. Não foi um movimento artístico apenas. Foi também um turbilhão pluralista de ideias, práticas e sensibilidades políticas e culturais que, de certo modo, fundaram o Brasil moderno, ao romper com o academicismo, o bacharelismo, o positivismo e o parnasianismo e ainda com os restos de romantismo que emanavam do século XIX. Era também o prenúncio da derrocada da República Velha, período em que o Brasil estava sob jugo da elite cafeeira de São Paulo. A história é irônica. Quem financiou a Semana de Arte Moderna, realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, foi justamente a elite paulista, que seria apeada do poder, poucos anos depois, em 1930. O movimento de 1922 foi um sintoma do mal-estar do Brasil oligárquico e atrasado.
            São Paulo liderava o atraso tanto quanto comportava a vanguarda. A cidade vivia um período de modernização urbana, de expansão tecnológica, de maquinização da vida, de industrialização. Havia imigrantes de toda parte e os movimentos operários, de inspiração anarquista e socialista, pululavam. Era essa e não outra a cidade brasileira mais receptiva aos movimentos de contestação da tradição oitocentista da Europa. O Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1924) ecoaram no modernismo brasileiro, que começara naquela fatídica semana de fevereiro de 1922, mas que deitaria raízes na cultura brasileira nas décadas que se sucederam.
            O modernismo brasileiro, diferentemente dos modernismos europeus, foi intensamente acometido pela tarefa de construir a nação. A literatura de Oswald e Mário de Andrade, a música de Villa-Lobos, a pintura de Di Cavalcanti e Anita Malfatti, estavam empenhadas em expressar, pensar, narrar, pintar, enfim, descobrir o Brasil. A língua portuguesa foi abrasileirada, pois libertada do formalismo de raiz lusitana e mais próxima dos falares brasileiros. Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, foi quem levou mais longe essa experiência linguística, que marcaria a literatura brasileira. Outros gêneros artísticos emularam esse espírito. Villa-Lobos buscou referências musicais nos sons do Brasil profundo. Os pintores modernistas não romperam apenas com o formalismo acadêmico, mas buscaram cenas brasileiras.
            A renovação intelectual pela qual o país passou nos anos vinte foi efetivamente plural, porque outro modernismo, similar e antagônico ao modernismo paulista, surgiria no Nordeste, tendo como epicentro a velha e importante cidade do Recife, aglutinando autores como José Lins do Rego, Jorge de Lima e Gilberto Freyre. Se em São Paulo poetas como Mário e Oswald de Andrade lideraram um movimento atento às vanguardas europeias, no Recife, o sociólogo Gilberto Freyre trouxe dos Estados Unidos um atualizado cabedal antropológico, decisivo na leitura que fez do Brasil. A atualidade intelectual de Freyre, ambiguamente, serviu para defender a legitimidade da tradição patriarcal do Nordeste. Os modernistas de São Paulo leram o Brasil a partir de uma região emergente, de uma cidade que se insinuava como uma grande metrópole moderna. No Recife, o outro modernismo leu o Brasil a partir de uma região economicamente decadente, com declinante poder político, mas herdeira de uma vigorosa e secular tradição cultural e artística, tanto erudita quanto popular.
            Enquanto no Sudeste se desenvolveu um modernismo “brasileirista”, irreverente na linguagem e iconoclasta, o modernismo regionalista do Nordeste foi mais introspectivo, mais inclinado à tradição, de algum modo desconfiado da irreverência e do tom urbano da literatura praticada pelos paulistas. Mário de Andrade, empenhado em afirmar um brasileirismo que se pretendeu “desgeografizado”, criticou os regionalismos, caracterizando-os agressivamente como “caipirismo, saudosismo, comadrismo que não sai do beco e o que é pior: se contenta com o beco”.
            No Manifesto regionalista de 1926, liderado Gilberto Freyre, o Nordeste açucareiro aparece como o lugar geográfico e cultural sobre o qual se afirmaria um ideário regionalista, em que se percebem contrapontos aos movimentos modernistas do Sudeste, em que  a tradição aparece como vital e dotada de possibilidades criadoras, que não deveriam ser esmagadas pela modernização das formas de vida, pelas “tentações falsamente modernizantes” e pelos “empreendimentos que cheiravam a um francesismo tardio ou a um americanismo mal digerido”.
            Para além das especificidades dos dois modernismos aludidos, o Brasil daqueles anos foi marcado por notáveis transformações em todas as direções. Havia uma desbragada busca pelo Brasil, seja lá o que isso fosse. Os novos tempos pareciam exigir um novo olhar para o passado, ajustado às recentes demandas. A tônica dessas novas tendências foi a busca de um rompimento com o passado e a (re)fundação do futuro, o que significou, também, (re)fundar o passado. Podemos dizer que essas vanguardas reinventaram o cânone cultural e reorganizaram o que o crítico João Alexandre Barbosa chamou de “biblioteca imaginária”. Reorganizar e revisar o passado nacional foram perspectivas constantes entre os intelectuais daquele período, interessados em formular retratos ou imagens do país – embora não fossem os primeiros, nem os únicos. No final dos anos vinte, e de notáveis investimentos intelectuais, destacam-se Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Desses ensaios emergiram novos painéis interpretativos da sociedade brasileira, até hoje comentados, revisitados e saudados como marcos da inovação daquele período.
            Os tempos são outros. O Brasil é outro. O mundo definitivamente é outro. Mas quando o modernismo fizer 100 anos, bem que o país poderia recuperar não as respostas de 1922, mas a irreverência, o espírito de contestação e a vontade criadora daqueles tempos. 
 

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pinheirinho: um certo retrato do Brasil

Na madrugada do dia 22 de janeiro de 2012, o velho, o passado, o atrasado, mostrou sua atualidade: a Polícia Militar de São Paulo removeu à força, com cenas explícitas de violência, cerca de 6000 pessoas que viviam no Pinheirinho, uma ocupação localizada em São José dos Campos, um dos mais ricos municípios do país, sede de empresas como Embraer e muitas outras. O terreno, de 1,3 milhão de metros quadrados, pertencia à massa falida do grupo liderado pelo especulador Naji Nahas. Os moradores haviam ocupado a área em 2004. A reintegração de posse, em defesa da propriedade, cujos titulares devem milhões em impostos municipais, estaduais e federais, tem sido questionada inclusive juridicamente. A propriedade privada não é um direito único e absoluto, inclusive pela constituição brasileira, que garante o direito à moradia, etc. De qualquer maneira, uma eventual desapropriação, mediante indenização, perfeitamente legítima nessas circunstâncias, garantiria os direitos dos proprietários sem esfacelar a vida de uma comunidade.
Além da reintegração de posse, soou estranho o fato de que tratores começassem a destruição das casas no exato momento em que as pessoas estavam sendo arrancadas do local. Para quem conhece a histórica morosidade do Estado brasileiro, não deixa de chamar atenção a incrível rapidez em destruir o bairro, onde moravam 1500 famílias, havia igrejas, pequenas casas comerciais e toda uma vida comunitária. Parecia que os promotores da desocupação temiam algum arranjo de última hora que evitasse aquele desfecho.
Segundo o parecer da relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada, a urbanista Raquel Rolnik, professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em entrevista à Folha de S. Paulo: “nenhuma remoção pode ser feita sem que a comunidade tenha sido informada e tenha participado de todo o processo de definição do dia da hora e da maneira como isso vai ser feito e do destino de cada uma das famílias” (Folha, 27/01/2012).
Se o ato da desocupação foi, em si mesmo, uma violência protagonizada pela Justiça e a Polícia Militar de São Paulo, absurdo maior foi o poder público ter deixado que a situação chegasse àquele ponto. A prefeitura de São José dos Campos ou o governo do estado de São Paulo poderiam ter pedido a indenização da área. (Só as dívidas em impostos cobririam parte dos custos financeiros da indenização). Não o fizeram por que não tinham intenção de resolver a questão em favor dos moradores ou tinham intenção de resolver o problema em benefício da especulação imobiliária ou dos interesses do especulador, falido, Naji Nahas.  O direito à propriedade é uma garantia constitucional, mas a Constituição também garante que a “propriedade atenderá a função social”. O Professor de Teoria Política e Direito da Unesp, Marco Aurélio Nogueira, n’O Estado de S. Paulo, pergunta: “Por que beneficiar proprietários em detrimentos de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns ‘anéis burocráticos’? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB, por implicação” (O Estado de S. Paulo 28/01/2012) 
Tanto o prefeito de São José dos Campos, José Eduardo Cury, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (ambos do PSDB), vêm sendo duramente criticados nas redes sociais por ativistas dos direitos humanos, por intelectuais de diferentes posições políticas e, inclusive, pela presidente da República, Dilma Rousseff, que qualificou a desocupação de “barbárie”. Não se trata de partidarizar a questão, mas de politizar a cidadania, como bem nota Raquel Rolnik: A questão fundiária do Brasil é politizada integralmente. Não só nesse caso. (...) Não tem processo decisório sobre a terra no Brasil que não esteja atravessado por questões econômicas e políticas. Independentemente disso, atender plenamente aos direitos dos cidadãos tem que ser cobrado por nós, cidadãos brasileiros. Não quero saber se o PT, o PSDB, o PSTU estão querendo tirar dividendos disso. Como cidadã, isso não interessa. O que interessa é que o cidadão, as pessoas têm que ser tratadas como Cidadãos, independentemente da sua renda, independente se são ocupantes formais ou informais da terra que ocupam, independentemente da sua condição de idade, gênero” (Folha de S. Paulo, 27/01/2012).
É desapontador que ainda hoje, em plena democracia, expressivos setores do poder político  e da opinião pública, justamente entre os que mais eloquentemente se arvoram modernos  não consigam assumir os direitos dos mais pobres como legítimos, colocando-se violentamente a favor da propriedade, como um valor absoluto, a revelia de outros preceitos constitucionais, de outras concepções de Estado e sociedade. É a persistência do liberalismo oligárquico da República Velha, cujo DNA patrício parece não desencarnar de um pedaço do país.
Todas as grandes democracias do mundo, em algum momento de sua história, alargaram o acesso a propriedade, mesmo os Estados Unidos. Por que o Brasil não pode democratizar o acesso a esse direito? A área onde ficava o antigo bairro de Pinheirinho deveria ter sido desapropriada, nos marcos das leis em vigor, os lotes deveriam ter sido legalizados, mediante pagamento em prestações de longo prazo, de maneira que os moradores pudessem pagá-las. Além da regularização fundiária, o poder público deveria ter urbanizado a área, com ruas pavimentadas, iluminação pública, água encanada, coleta de esgoto, posto de saúde e escola na redondeza. Pequena realização desse porte estava perfeitamente ao alcance do poder público, ainda mais em um dos mais ricos municípios do mais rico estado do país[1][1].
Não foi isso que aconteceu. O governo federal pecou, talvez, por omissão e demora. Mas a sessão paulista da Justiça, o estado de São Paulo e a prefeitura de São José dos Campos, pecaram por opção preferencial pelo stutos quo, ao ficar violenta e ostensivamente ao lado dos interesses de Naji Nahas e ou da especulação imobiliária.


[1] Observe o leitor a moderação quase legalista desta óbvia saída. Lamentavelmente as lideranças de São Paulo estão aquém do conservadorismo civilizado, tal o grau do reacionarismo vigente.